|
Ernesto Che Guevara vestindo sua característica farda militar |
Capítulo 1: O triunfo da
Revolução
No entardecer do dia 2 de janeiro de 1959, Ernesto
Che Guevara entrou triunfalmente em Havana, capital de Cuba. Tinha então 30
anos, usava um boné militar sobre os longos cabelos revoltos e ostentava um
sorriso maroto no rosto. De pé sobre um jipe, personificava todo o encanto
romântico da revolução e arrancou aplausos da multidão que, fascinada, apinhava
as ruas da cidade.
Durante os últimos dois anos, ele lutara, sob o
comando de Fidel castro, para derrubar a ditadura brutal de Fulgêncio Batista.
A revolução que começara como um foco diminuto de sublevados – com Fidel e
Guevara havia cerca de cem combatentes, em 1957 – crescera para se tornar um
levante popular, um onda indignada que engoliu o regime de Batista.
Apenas dois dias antes, Guevara comandara a mais
importante vitória militar da guerra. Com algumas dezenas de homens assumira o
controle de Santa Clara, uma das maiores cidades do país. Foi a goda d’água. No
dia de Ano Novo, Fulgêncio Batista fugiu do país – a revolução vencera.
A tropa de Guevara, um heterogêneo grupo de homens
magros e barbudos, endurecidos pela luta de guerrilha no inóspito interior do
país, atravessou Havana para atacar La Cabaña, uma fortaleza construída quase
duzentos anos antes num lugar privilegiado, com vista sobre a cidade e o porto.
O esperado combate não aconteceu contudo. A guarnição preferiu se render. Quase
ao mesmo tempo, noutra parte da cidade, outro importante comandante
revolucionário, Camilo Cienfuegos, ocupava o quarte-general das Forças Armadas,
no Campo Colúmbia. Os guerrilheiros tomaram o palácio presidencial, postos
militares e delegacias de política – tudo sem disparar um só tiro.
Os habitantes de Havana já haviam testemunhado golpes
de Estado e a violência de regimes militares ou civis, todos corruptos. Assim,
era natural que esperassem um banho de sangue. Mas não houve violências, exceto
ocasionais saques em lojas e casas de personalidades notórias do regime
Batista. A moderação e a disciplina das forças guerrilheiras causou admiração
na população – o prestígio do comandante Fidel Castro e de seu lugar-tenente,
Che Guevara, não cessava de crescer.
Nascido na Argentina, Guevara tinha 28 anos quando em
1956, aderiu ao grupo revolucionário de Fidel, no México. Foram os cubanos que
lhe deram o apelido de “Che”, que ficaria incorporado a seu nome – o termo
significa “irmão” em idioma guarani e ingressou como interjeição e vocativo na
linguagem cotidiana de argentinos, uruguaios e brasileiros do Sul.
|
Guevara e outros líderes rebeldes entram em Havana no dia 2 de janeiro de 1959, depois da queda do ditador Fulgêncio Batista |
|
Fidel Castro e Guevara em uma manifestação pública um ano depois do triunfo da revolução. ambos eram os membros mais populares do novo governo cubano |
Uma das principais providências do guerrilheiro
depois da vitória foi telegrafar para seus pais, na Argentina, e convidá-los a
vir a Cuba conhecer a experiência revolucionária que dali em diante enfrentaria
sua fase mais difícil. Depois de tomar o poder, havia que saber o que fazer com
ele, e não existia um plano de ação preestabelecido. Mesmo o líder Fidel, um
advogado alto e magro de 32 anos, parecia não ter muito claro o caminho a
seguir.
Essa fora sua segunda tentativa de derrubar a
ditadura de Batista. Em 26 de julho de 1953, a frente de 130 homens tentou
tomar o quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do
país. O ataque foi um fiasco, muitos rebeldes foram mortos e capturados. Alguns
foram assassinados no cárcere, outros levados a julgamento. Preso, dias depois,
Fidel fez sua própria defesa no tribunal, uma apaixonada peça de oratória mais
tarde publicada sob o título de “A história me absolverá”. Os juízes de
Batista, porém, não se deixaram comover e o condenaram a quinze anos de cadeia.
Dois anos depois foi libertado, quando Batista,
tentando amainar as tensões políticas, decretou anistia geral. Fidel partiu em
seguida para o México, onde fundou o Movimento 26 de Julho e recomeçou a fazer
planos para derrubar Batista. Foi lá que conheceu Guevara.
Revoluções e guerras civis não eram elementos
estranhos a Cuba. Essa grande ilha, localizada a somente 150 quilômetros da
costa dos Estados Unidos e, na época, com a maior população do Caribe (6,5
milhões de habitantes), tinha uma história de violência e opressão. Descoberta
por Cristóvão Colombo em 1492, ainda era uma colônia espanhola no final do
século XIX, quando o restante da América Latina já conquistara sua
independência. Revoltas e conspirações contra o poder colonial tinham sufocado
ao longo do século, a mais sangrenta delas a partir de 1896, quando começou a
Guerra dos Dez Anos, que custou a vida de mais de 200. 000 cubanos e espanhóis.
Se não foi capaz de garantir a independência de Cuba, o conflito terminou com a
libertação da grande população negra da ilha. Outras reformas prometidas pela
Espanha não se materializaram, contudo, e quando em 1895 Madri suspendeu os
direitos civis em Cuba, explodiu uma segunda guerra civil.
|
Em setembro de 1933, Fulgêncio Batista chefiou um golpe militar que o tornou o virtual líder do governo. Ele dominou a vida política do país até ser deposto pela revolução em 1959 |
Os líderes da Guerra dos Dez Anos, entre eles o poeta
José Martí e o ex-escravo Antonio Maceo, pegaram em armas novamente decididos a
combater até a independência total do país. Em fevereiro de 1898, quando os
rebeldes estavam próximos da vitória, um navio de guerra norte-americano, o
Maine, explodiu no porto de Havana, matando dezenas de marinheiros. Ainda que a
causa jamais tenha sido esclarecida, o incidente serviu de pretexto para a
intervenção dos EUA. Com a entrada em cena das tropas norte-americanas, os
espanhóis foram rapidamente derrotados, e Cuba viu-se livre da Espanha.
Havia um preço a pagar, porém. No final da guerra, os
EUA ocuparam e governaram a ilha por três anos. Em 1902, Washington concedeu
independência a Cuba, mas condicionada a um sistema de tutelagem que permitia
aos norte-americanos intervirem militarmente no país sempre que julgassem
necessário – e, de fato, exerceram este direito diversas vezes, até que o
acordo foi revogado em 1934. Durante este período, as terras comunais foram
divididas e substituídas por grandes plantações de açúcar, de propriedade de poderosos
latifundiários. Mesmo depois de 1934, os EUA continuaram sendo o principal
parceiro comercial de Cuba, e os sucessivos e corruptos governos da ilha
levavam sempre em conta os interesses econômicos norte-americanos. O último
desses governantes foi Batista. Fidel, então, viu-se diante da questão-chave do
poder em Cuba: como lidar com os EUA.
Os três
principais líderes da revolução – Fidel, Guevara e Cienfuegos – estavam
igualmente envolvidos na dura missão de dar forma ao novo regime. Sob a batuta
do guerrilheiro argentino, estavam sendo organizados tribunais revolucionários
para julgar pessoas acusadas de crime de guerra contra o povo cubano, mas os
planos de governo continuaram indefinidos. Ao que parecia, durante três anos
eles tinham se concentrado em vencer a guerra e descuidado do futuro. Agora, os
problemas entravam aos turbilhões pela janela e urgia a construção de uma nova
ordem econômica e social.
|
Palácio presidencial em Havana, construído em 1920. Durante os primeiros estágios da guerra revolucionária, em 1957, foi atacado sem sucesso por rebeldes inexperientes. Dois anos depois, as forças de Fidel tomaram a capital sem disparar um só tiro. |
Cuba festejava a vitória rebelde. Fidel Castro
começou no leste do país uma espécie de marcha triunfal, viajando 750
quilômetros pela “Carretera Central” até Havana. Multidões o saudavam ao longo
da rota, e o comandante parava a todo momento para fazer discursos, alguns dos
quais com horas de duração. Afinal, em 8 de janeiro de 1959, entrou triunfalmente
na capital com o seu irmão Raúl, Cienfuegos, Guevara e outros líderes
revolucionários a seu lado. A cidade explodiu em festa – os sinos das igrejas
tocavam, soavam as sirenes das fábricas e dos navios no porto, centenas de
milhares de pessoas foram às ruas manifestar seu apoio à revolução.
A caravana parou no palácio presidencial, onde Castro
encontrou o juiz Manuel Urrutia, escolhido para presidir o governo provisório.
Muitos políticos estavam voltando do exílio em Miami, e a revolução parecia trazer,
enfim, a redenção para uma terra sofrida. Do balcão do palácio, Fidel encantou
uma concentração de meio milhão de pessoas com um discurso veemente e
entusiástico. Mais tarde, falou no Campo Colúmbia para uma plateia ainda maior.
Ele apresentou Guevara e ouros comandantes militares, descreveu os objetivos da
revolução, advertiu seus partidários sobre as artimanhas dos inimigos, exortou
todos os grupos políticos a deporem as armas e pediu paz e ordem. Alguém soltou
duas pombas no meio da multidão, e uma delas foi pousar no ombro de Fidel – não
havia simbolismo melhor para as esperanças de paz depois de anos de violência.
|
Fidel Castro sendo empossado como primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959. À esquerda está Manuel Urrutia, o liberal escolhido para chefiar o governo provisório. Mais tarde, os partidos políticos foram abolidos e Fidel e Guevara governaram sem oposição organizada. |
Cuba estava embarcando naquele momento histórico em
uma experiência sem paralelos na história do continente e, nos cinco anos
seguintes, Che Guevara desempenharia um papel crucial no novo governo. Depois
deixaria Cuba para lutar contra a opressão em outros países do Terceiro Mundo.
Morreu antes de completar 40 anos. Ele se tornou o símbolo de um novo tipo de
revolucionário, capturou a imaginação do mundo e fixou uma imagem romântica que
sobreviveu nas décadas seguintes.
|
Durante seus anos no governo de Cuba, Guevara insistiu na necessidade de a revolução gerar um "novo homem socialista". Sua política econômica, porém, foi um fracasso |
Capítulo 2: Passeio pelas
misérias da América Latina
Ernesto Guevara nasceu em Rosário, Argentina, em 14
de junho de 1928, em uma família de alta classe média, ainda que sem fortuna.
Seu pai, o arquiteto e engenheiro civil Ernesto Guevara Lynch, tropeçara em
alguns investimentos e fora forçado a vender as terras da família no interior.
Um amigo de Che, Ricardo Rojo, escreveu em “Meu amigo Che” que diante do mundo
dos negócios, o Guevara pai “foi colocado entre as alternativas: dinheiro ou
continuar a ser um cavalheiro, como foram seus ancestrais. Ele escolheu a
segunda opção, e este foi o espírito generoso que Che herdou”.
Guevara Lynch era um militante político. Apoiou a resistência
republicana na Guerra Civil Espanhola, nos anos 30, e participou de campanhas
para brecar a propaganda nazista nas Américas na Segunda Guerra Mundial.
Durante o conflito, pertenceu a diversos comitês e organizações de ajuda aos
países democráticos e, mais tarde, fez oposição ao governo de Juan Perón na
Argentina e apoiou grupos revolucionários paraguaios. A mãe de Che, Cella de la
Serna, era igualmente ativa. Foi presa diversas vezes por sua militância
política e, como o marido, apoiou a carreira revolucionária do filho. Durante a
juventude de Che, a casa dos Guevara vivia repleta de republicanos espanhóis e
outros militantes socialistas ou liberais.
Quando tinha 2 anos de idade, Che Guevara sentiu os
primeiros sintomas da asma que o atormentaria ao longo da vida. Para amenizar
os efeitos da doença, a família chegou a se mudar para Alta Gracia, já na
Cordilheira dos Andes. À noite, muitas vezes, Guevara Lynch dormia sentado na
cama do filho, com a cabeça do menino pousada em seu peito para ajudá-lo a
suportar os ataques de asma. Ernesto tinha quatro irmãos e uma amistosa vida
familiar. “Nós vivíamos uma boa vida. Eu passava meu tempo com o menino.
Ensinei-o a atirar, a nadar e o levei para jogar futebol e rugby. Cuidava para
que no verão passasse três horas por dia na piscina, para relaxar seus músculos
do peito e permitir que respirasse melhor”, recordou o pai, anos mais tarde.
Apesar desses cuidados, a asma obrigava Guevara a
ficar longos períodos longe da escola, estudando em casa, com os pais. Da mesma
forma, ainda que se esforçasse nos esportes e exercícios vigorosos, era uma
criança frágil, sujeita aos efeitos da doença crônica. Mas, por certo, adquiriu
resistência física e consta que, entre todos os esportes, tornou-se um ciclista
razoável.
Quando Guevara tinha 12 anos, sua família mudou-se
para Córdoba, a segunda maior cidade do país, e foi viver próxima a uma favela.
O menino brincava sem restrições com as crianças pobres do lugar, um
comportamento inusitado para um filho da alta classe média argentina. De acordo
com um amigo da família, a casa dos Guevara abrigava cerca de 3. 000 livros, e
o adolescente tornou-se particularmente interessado em poesia, ainda que lesse
também filosofia, arqueologia, história e uma variedade de outros assuntos.
Atraído por viagens, participou de uma excursão que o levou de uma ponta a
outra da Argentina – a aventura foi aproveitada para um anúncio da fábrica de
bicicleta que utilizou. Nessas viagens costumava comprar montes de livros e
manter um diário – ambos os hábitos seriam mantidos quando se tornou um
revolucionário de arma na mão.
No final de 1944, quando Guevara tinha 17 anos, sua
família mudou-se para Buenos Aires, capital e centro da vida cultural e
política da Argentina. Ele havia decidido estudar medicina, mas continuava
atraído por viagens e aventuras. No dia 29 de dezembro de 1949, com seu amigo
Alberto Granados, começou uma longa viagem de motocicleta em direção ao Chile.
A ideia era rodar todo o continente, conhecendo gente, as condições de vida, a
história e a geografia da América Latina. Cruzaram sem problema as Cordilheira
dos Andes, mas, próximo da capital chilena, Santiago, a moto de Guevara
quebrou, e os dois viajantes foram forçados a pedir carona para a cidade.
Em Santiago, trabalharam e juntaram dinheiro para
prosseguir viagem. Foram visitar as ruínas de Machu Picchu, no Peru. Lá
encontraram uma colônia de leprosos – Granados já contava com alguma
experiência no trabalho com leprosos -, e Guevara resolveu se tornar um
especialista no tratamento da doença, impressionado, em especial, com a
camaradagem existente entre os habitantes da colônia. “A mais alta forma de
solidariedade humana cresce entre essa solitária e desesperada gente”, escreveu
mais tarde. Ele também sairia dessa viagem profundamente marcado pelo contato
com a extrema pobreza dos camponeses peruanos, que passavam a vida trabalhando
pequenos lotes de terra pertencentes a ricos latifundiários.
|
Guevara nasceu em 14 de junho de 1928 em Rosário, uma cidade no sudoeste da Argentina. Durante a juventude viajou pela América do Sul e ficou chocado com a miséria e a injustiça social que encontrou. |
Do leprosário foram navegar no rio Amazonas. Sem
dinheiro, em Letícia, uma cidade colombiana às margens do grande rio,
conseguiram trabalho como técnicos de uma equipe de futebol que venceu o
campeonato regional. Em Bogotá, a capital do país, acabaram presos por vadiagem
e receberam ordens de abandonar a Colômbia. A expulsão só foi suspensa porque
os estudantes amigos emprestaram recursos suficientes para comprar passagens
para a Venezuela, onde Granados pretendia trabalhar em outra colônia de
leprosos. Guevara prometeu reunir-se a ele mais tarde, mas primeiro pretendia
retornar a Buenos Aires e terminar os seus estudos.
Depois de um rápido passeio por Miami, Guevara voltou
à Argentina para prestar os exames finais na faculdade. Nesse meio tempo foi
convocado para o serviço militar obrigatório e, ironicamente, considerado
inapto por causa da asma. Em março de 1953, com idade de 25 anos, finalmente
recebeu seu diploma, mas ainda não estava preparado para se tornar médico.
Preferiu viajar para a Bolívia, com outro amigo, onde chegou em julho de 1953,
o mesmo mês em que Fidel Castro atacava sem sucesso o quartel de Moncada, em
Santiago de Cuba.
Guevara ainda não tinha nenhum compromisso político,
ainda que exibisse fortes simpatias pela causa dos pobres e oprimidos. “Quando
comecei meus estudos de medicina, a maioria de meus ideais como revolucionário
não existiam. Como a maioria das pessoas, eu estava em busca de sucesso (...)
Mas comecei a viajar por toda a América, onde entrei em estreito contato com a
pobreza, a fome e a doença (...) Vi a degradação e a repressão. Então comecei a
entender que havia outra coisa tão importante quanto ser famoso, que era ajudar
essa gente”, relatou mais tarde.
Em La Paz, capital da Bolívia, Guevara encontrou-se
com grupos políticos articulados, especialmente exilados argentinos. Um dos
novos amigos, Ricardo Roo, que mais tarde seria seu biógrafo, era um advogado
argentino que escapara das prisões do regime de Perón. A Bolívia vivia também
momentos de efervescência política. O governo esquerdista estava dando
importantes passos para nacionalizar as minas de estanho e para redistribuir
terras entre os paupérrimos camponeses índios, objetivos com os quais Guevara
concordava inteiramente. Mas quando testemunhou a aplicação prática das medidas
– os índios recebiam terras inferiores e eram tratados com menosprezo pelos
funcionários públicos – Guevara percebeu que uma reforma agrária aprovada pelo
Congresso Nacional ou boas intenções governamentais não eram suficientes para
alterar um estado de injustiça crônica.
|
Em 1944, a família Guevara mudou-se para Buenos Aires, a capital do país. Três anos depois, Che ingressou na faculdade de Medicina e estudou até se tornar um médico, em 1953. |
Seu plano era encontrar com Granados na Venezuela,
mas Rojo o convenceu a acompanha-lo até a Guatemala, “onde as coisas estão
acontecendo”. Em 1950, os guatemaltecos tinham eleito presidente o coronel
Jacobo Arbens Guzmán, um esquerdista moderado que prometera dar sequência ao
programa de reformas sociais iniciado no país em 1944, quando fora deposto o
último regime militar. Três anos depois, Arbenz estava sob fogo cerrado das
elites locais e dos interesses norte-americanos no país, capitaneados pela
poderosa United Fruit Company, que explorava o plantio e a exploração de frutas
tropicais em diversos países centro-americanos.
Guevara, Rojo e um grupo de outros argentinos fizeram
uma difícil viagem através do Peru e Equador, de onde partiram para o Panamá em
um barco da United Fruit – o transporte foi obtido graças à interferência de um
proeminente político socialista chileno, Salvador Allende, que vinte anos
depois seria presidente de seu país e terminaria assassinado durante um
sangrento golpe militar.
Do Panamá o grupo foi para a Costa Rica, onde vivia
um grande comunidade de exilados latino-americanos, incluindo alguns
remanescentes do ataque ao quartel de Moncada. Os cubanos garantiam que
voltariam a Cuba para derrubar Batista, mas, de acordo com Rojo, nem ele nem
Guevara os levaram muito a sério. Em janeiro de 1954, os dois chegaram à
Guatemala para mergulhar em um universo político radical. Foi lá que Guevara
conheceu a peruana Hilda Gadea Acosta, com quem se casaria mais tarde, e daria
importante contribuição a sua formação política. Foi lá também que conheceu
Nico Lopez, um dos líderes da revolta de 1953 em Cuba e que, no futuro,
apresentaria Guevara a Fidel e Raul Castro no México.
Neste meio tempo, o presidente Arbens pilotava uma
ousada reforma agrária, com o apoio dos comunistas e esquerdistas da Assembleia
Nacional. As áreas improdutivas estavam sendo desapropriada e distribuídas
entre os camponeses sem terras – a United Fruit, por exemplo, perdeu 91. 000
hectares, colocando Washington em pé de guerra. Com a aprovação do presidente
Dwight Eisenhower, a CIA- o serviço secreto norte-americano – armou um pequeno
exército de exilados guatemaltecos e mercenários de outros países
latino-americanos que, no dia 18 de junho de 1954, invadiu a Guatemala.
O exército invasor operava a partir de Honduras, sob
o comando direto do secretário de Estado, John Foster Dulles, e de seu irmão,
Allen Dulles, diretor da CIA, que também tinham garantido o apoio dos próprios
militares guatemaltecos. Assim, quando o exército regular aderiu ao golpe,
Guevara tentou em vão organizar uma resistência armada. Uma semana mais tarde o
presidente Arbenz foi substituído por uma ditadura militar.
O futuro comandante guerrilheiro ficou chocado com a
facilidade com que um governo popular era esmagado. “A última democracia
revolucionária da América Latina – a de Jacobo Arbenz – caiu como resultado da
fria e premeditada agressão conduzida pelos EUA (...) Isto foi visivelmente
encabeçado pelo secretário de Estado (John Foster) Dulles, um homem que, não
por coincidência, é também acionista e advogado da United Fruit Company. Quando
a invasão norte-americana começou, eu tentei juntar um grupo de jovens como eu
para contra-atacar. Na Guatemala era necessário lutar e quase ninguém lutou.
Era necessário resistir e quase ninguém resistiu”, escreveu Guevara.
Hilda Gadea Acosta conta: “Durante a agressão, Che
foi guarda voluntário durante o blecaute, nos momentos em que a cidade estava
sendo bombardeada. Ele também pediu para ir para o fronte, mas jamais foi
enviado”. Ainda que as exortações de resistência feitas por Guevara não tenham
produzido nenhum efeito prático, foram suficientes para colocar seu nome na
lista negra dos golpistas. Avisado pelo embaixador argentino de que sua vida e
a de sua mulher estavam em perigo, Guevara refugiou-se na embaixada.
|
Guevara com sua mãe, Cella de la Serna, e seu pai, Ernesto Guevara Lynch, em Havana em 1959. A família do líder revolucionário pertencia à alta classe média, mas tinha tradicional militância esquerdista. |
A derrubada do governo Arbenz convenceu toda uma
geração de jovens latino-americanos, em especial Guevara, de que uma revolução
verdadeira precisa ser garantida pela força. “Foi a Guatemala que o convenceu
da necessidade de luta armada, de tomar a iniciativa contra o imperialismo”,
disse Gadea. O próprio Guevara comentou mais tarde: “Quando eu estava na
Guatemala de Arbenz, comecei a tomar notas e a pensar sobre quais seriam as
responsabilidades de um médico revolucionário. Então, depois da agrassão da
United Fruit Company, entendi uma coisa fundamental: para ser um médico
revolucionário, você primeiro precisa de uma revolução”.
|
Jacobo Arbenz Guzmán, um socialista moderado com planos de reforma agrária, foi eleito presidente da Guatemala em 1950. Quatro anos mais tarde, quando Guevara estava no país, Arbenz foi derrubado por um golpe de Estado patrocinado pela CIA. |
Che Guevara estava a caminho de se tornar um
revolucionário. Mas primeiro tinha que sair vivo da Guatemala. Recusou uma
oferta de salvo-conduto para voltar à Argentina e pediu para ir para o México.
Não está claro se já pensava em juntar-se aos cubanos ou se escolheu o México
simplesmente porque se tratava de um país mais hospitaleiro para refugiados
políticos.
De qualquer forma, Guevara chegou ao México com um
amigo guatemalteco e juntos trabalharam como fotógrafos de rua, ganhando apenas
o suficiente para alugar um pequeno e abafado apartamento. Hilda chegou pouco
depois e foi morar com eles. Logo, graças às suas conexões políticas, Guevara
estava trabalhando na seção de alergia do Hospital Geral da Cidade do México,
ao mesmo tempo em que lecionava na Universidade Autônoma do México e ainda
conseguia tempo para fotografar para uma agência de notícias latino-americana.
Um dia encontrou no hospital o cubano Nico Lopez, que o levou para conhecer um
conterrâneo recém-chegado à capital mexicana, Raul Castro.
|
Faixa colocada em uma plantação da United Fruit Company proclama a oposição do presidente Arbens à intervenção estrangeira, em 1954. Pouco depois, tropas de exilados e mercenários, recrutados pelo governo dos Estados Unidos, invadiram o país e instauraram uma ditadura militar. |
Gadea conta que Che levou Raul para o apartamento do
casal e se tornaram instantaneamente amigos, passando a encontrar-se quase
todos os dias. Ela descreve Raul como “um dedicado revolucionário”, que era
“aberto, seguro de si próprio, muito claro na exposição de suas ideias”.
Durante a segunda semana de julho de 1955, Raul apresentou Guevara a seu irmão
mais velho, Fidel. Foi amizade à primeira vista. Depois de conversarem toda a
noite, ficou acertado que o argentino participaria da expedição 26 de julho,
que em breve pretendia iniciar uma revolução em Cuba.
|
Em julho de 1956, Fidel Castro (assinalado) e Guevara (sentado, o segundo a partir da esquerda) foram presos na Cidade do México com outros vinte exilados cubanos por planejarem a derrubada de Batista. Foram libertados um mês depois e levaram adiante a expedição a Cuba. |
"Eu o encontrei (Fidel Castro) em uma dessas noites
frias da Cidade do México e lembro que nossa primeira discussão foi sobre
política internacional. Algumas horas mais tarde – na madrugada – eu era um dos
futuros expedicionários... Depois das minhas experiências de viagem por toda a
América Latina e depois da Guatemala, seria preciso muito pouco para me
convencer a me juntar a qualquer revolução contra a tirania. Mas Fidel provocou
um grande impressão em mim. Ele estava absolutamente certo de que iríamos a
Cuba, que chegaríamos lá; que, uma vez lá, nós lutaríamos; e que, tínhamos que
agir, lutar, para consolidar nossa posição. Parar de cogitar e começar a luta
real. E para provar ao povo cubano que podia confiar em sua palavra, fez seu
famoso discurso: ‘Em 1956, nós devemos ser homens livres ou mártires’,
anunciando que, antes do fim do ano, ele desembarcaria em algum lugar de Cuba
no comando de uma força expedicionária”, escreveu Che Guevara, quando era
membro do governo cubano.
|
John Foster Dulles, o secretário de Estado do governo do presidente Dwight Eisenhower, planejou o golpe contra Arbenz |
Capítulo 3: Os jovens
barbudos de Sierra Maestra
|
O papel de Guevara na Revolução cubana fez dele um inovador na guerra de guerrilhas. Ele via a guerrilha como um catalisador da revolução armada, começando no campo e espalhando-se pelas cidades. |
Guevara dedicava-se agora todo seu tempo à tarefa de
se tornar um revolucionário cubano. Sob a batuta de Alberto Bayo, um veterano
de 63 anos da Guerra Civil Espanhola, cerca de oitenta homens começaram um
treinamento de combate em uma fazendola a 32 quilômetros da Cidade do México. O
ponto alto do treinamento eram as táticas de guerrilha, as operações de ataque
e fuga com as quais pequenos grupos fustigam um exército regular nas montanhas
ou selvas, tentando desmoralizá-lo. Guevara e os cubanos suportavam marchas de
quinze horas através de terrenos difíceis, subindo morros, cruzando rios e
abrindo caminho no mato, aprendendo e aperfeiçoando os procedimentos da
emboscada e da rápida retirada. O argentino logo se tornou um aprendiz
destacado do velho Bayo.
Mais tarde, o guerrilheiro relembraria esse período
inicial de treinamento: “Minha imediata impressão ao ouvir a primeira lição foi
a da possibilidade de vitória, da qual eu tiha muitas dúvidas quando me juntei
ao comandante rebelde (Castro). Eu estava ligado a ele sobretudo pelos laços da
aventurosa e romântica simpatia, e pela convicção de que valia a rena morrer em
uma praia estrangeira por puro ideal”. Pelo resto de sua vida, Guevara
cultivaria uma idealizada e romântica noção de revolução, assim como do
campesinato que ele pretendia libertar.
A polícia mexicana, alertada pelo serviço secreto
cubano, invadiu a fazenda em julho de 1956, prendendo 24 homens, entre eles
Fidel, Bayo e Guevara. Eles foram libertados um mês depois, mas, temendo a
pressão da polícia mexicana e que alguma outra invasão, entre as muitas
planejadas por grupos exilados cubanos, pudesse lançar sombras sobre seu
próprio desembarque, pudesse lançar sombras sobre seu próprio desembarque,
Fidel fez planos para começar sua revolução em novembro de 1956.
Depois de um ano de frenética atividade no México e
nos Estados Unidos, Fidel levantara fundos suficientes para comprar um barco –
o dilapidado iate chamado Granma, vovó em inglês -, armas, munição e
suprimentos médicos suficientes para seu pequeno bando de futuros
guerrilheiros. Em 25 de novembro de 1956, o granma levantou âncora no porto de
Tuxpan iniciando, em segredo, a viagem que mudaria a história de Cuba. Havia 82
homens (28 deles veteranos do ataque a Moncada) apinhados nos 17,5 metros da
embarcação. Guevara, o médico da expedição, era um dos quatro não cubanos a
bordo. Mal chegaram a mar aberto, a maioria dos viajantes estava prostrada com
enjoos. O médico, além de mareado, sofria forte ataque de asma.
O plano de Fidel era desembarcar no dia 30 de
novembro perto da cidade de Niquero, na província de Oriente, a quase 650
quilômetros de Havana. A chegada do Granma deveria coincidir com um levante em
Santiago de Cuba, capital da província, comandado pelo líder estudantil Frank
País, de 24 anos. A ideia era combinar os rebeldes de Santiago com as forças de
Castro, criando um movimento de duas pontas, rural-urbano, o catalisador de uma
revolução de dimensões nacionais. As más condições de navegabilidade do Granma,
porém, provocaram um atraso de três dias. A insurreição eclodiu no dia combinado
e foi esmagada antes que Fidel e seus homens chegassem à praia, em 2 de
dezembro.
A invasão de Fidel converteu-se em um virtual
desastre. Depois de sete dias no mar, o exército revolucionário desembarcou,
mas não no local designado, perto de Niquero, onde esperavam os suprimentos.
Estavam 16 quilômetros ao sul, nos mangues da praia Colorado, perto da vila de
Belic. O iate encalhou na areia a centenas de metros da praia e foi logo
descoberto por uma lancha da guarda costeira. Os rebeldes precisaram nadar para
a costa, perdendo equipamentos preciosos, e vagar no terreno pantanoso,
enquanto aviões do governo sobrevoavam o local. Levaram horas para encontrar
terra firme.
“Nós encontramos terra firme, nos perdemos,
perambulando como sombras ou fantasmas, marchand em resposta a algum obscuro
impulso psíquico”, escreveu Guevara em Reminiscências da Guerra Revolucionária.
“Havíamos enfrentado sete dias de constante fome e doença durante a travessia
do mar e nos defrontamos com três dias ainda mais terríveis em terra.
Exatamente dez dias depois de nossa partida do México, nas primeiras horas da
manhã de 5 de dezembro, após uma noite de marcha constantemente interrompida
pela fadiga e períodos de descanso, encontramos a área paradoxalmente conhecida
como Alegria de Pío.
|
Castro arregimenta camponeses na região do acampamento rebelde em Sierra Maestra. A força guerrilheira original era de 82 homens, logo reduzida a apenas dezessete. No período de um ano, porém, o movimento cresce, com a chegada de recrutas das cidades, e assume o controle das montanhas. |
Enquanto os rebeldes de Fidel se espalhavam para
descansar perto dos canaviais de Alegria de Pío, unidades do Exército cubano
cercavam a área. Guevara relatou que, como médico da tropa, estava tratando de
arranhões e outros pequenos ferimentos decorrentes do desembarque e da marcha
tumultuados, quando percebeu os aviões circulando sobre os canaviais e começou
a fuzilaria. Um homem perto de Guevara deixou cair seu carregador de munição, e
o guerrilheiro argentino foi confrontado com uma séria decisão: “Foi, talvez, a
primeira vez em que fiquei diante do dilema de escolher entre minha devoção à
medicina e meu dever de soldado revolucionário. Ali, a meus pés, estavam a
sacola cheia de medicamentos e uma caixa de munição. Seria impossível carregar
as duas, eram demasiadamente pesadas. Eu peguei a munição, abandonei os
remédios e comecei a atravessar o descampado, tentando chegar ao canavial”.
Enquanto seus companheiros caíam feridos ou mortos,
Guevara foi atingido no peito e no pescoço. Ainda que os ferimentos tivessem
sido superficiais, no momento ele estava certo de que eram fatais e se preparou
para morrer de “maneira digna”, ao mesmo tempo em que “tudo ficou obscurecido
pelos aviões voando baixo e metralhando o canavial”. “Engrossando a confusão,
ocorriam cenas dantescas e grotescas, como a de um camarada de considerável
peso tentando se abrigar sob um único pé de cana. No meio do turbilhão, alguém
sussurrou: “Silêncio”.
|
Guerrilheiros montam coquetéis molotov às vésperas da ofensiva final de Fidel Castro contra o governo, em 1958. Guevara era então o mais habilidoso comandante da revolução. |
Pelo menos 25 dos 82 rebeldes morreram na emboscada,
entre eles Nico Lopez, o homem que apresentara Guevara a Fidel na cidade do
México. Muitos estavam feridos. Aqueles que se encontravam em condições de
escapar – como Guevara com a ajuda de companheiros – dispersavam-se em todas as
direções. Sobreviventes formavam pequenos grupos, outros foram capturados pela
Guarda Rural de Batista nos dias seguintes e assassinados. Não faltaram também
desertores. Guevara e um grupo de cinco homens perambularam dias, iludindo as
forças do governo e comendo o pouco que encontravam pelo caminho. Afinal,
alguns camponeses guiaram os rebeldes para Sierra Maestra, onde encontraram
Fidel. Dos 82 homens desembarcados do Granma, havia apenas 17 remanescentes.
Sierra Maestra, onde os rebeldes planejavam começar
sua revolução, era a mais alta cadeia de montanhas de Cuba, um lugar selvagem e
escassamente povoado. Em 1956, era praticamente inacessível às forças regulares
por causa da falta de caminhos pavimentados. A maioria do terreno era coberto
por mato ralo, ainda que houvesse algumas roças de subsistência e umas poucas
plantações de café. Na maioria, os habitantes eram camponeses pobres e
analfabetos, lavrando pequenas roças, quase sempre como arrendatários. O
governo estava representado pela Guarda Rural, cuja principal preocupação era
proteger a propriedade dos poucos fazendeiros e que era odiada pelos
camponeses. Quando os guerrilheiros de Fidel chegaram à região, eles preferiram
manter prudente distância.
Em meados de janeiro de 1957, Fidel e seu exército.
Agora com cerca de 20 homens, decidiram realizar um ataque para mostrar que o
movimento 26 de julho estava vivo e ativo. O primeiro alvo foi uma pequena
guarnição do Exército, na foz do rio La Plata. Enganando um informante da
Guarda Rural de que eram tropas do governo, os rebeldes entraram no destacamento.
A primeira vítima, quando a batalha começou, foi o próprio informante. Uma hora
depois, tinham tomado o posto, matado dois soldados, aprisionado os demais e
capturado algumas armas, sem terem sofrido nenhuma baixa. “O efeito de nossa
vitória foi eletrizante, como anúncio luminoso, mostrando que o exército
rebelde realmente existia e estava pronto para lutar. Para nós, foi a
reafirmação de nossas chances de vitória total”, ponderou Guevara, anos depois.
|
Batista examina armas capturadas depois do fracassado ataque ao quartel Moncada, em 1953. Três anos depois, Fidel Castro estava de volta ao país, desta vez para liderar uma revolta destinada a ter sucesso. |
Em fevereiro de 1957, dois meses depois de o Granma
encalhar na praia Colorado, um repórter do New York Times, Herbert Matthews,
foi à Sierra e fez uma longa entrevista com Fidel. Quando a reportagem foi
publicada, o movimento ganhou notoriedade internacional, despertou simpatias e,
mais importante, legitimidade. O governo Batista foi forçado a reconhecer que
havia um exército rebelde em atividade dentro de Cuba.
Os revolucionários impressionavam os observadores por
seguirem um novo código de conduta bélica. Como a maioria dos exércitos,
defrontavam-se com espiões e desertores – e, em geral, matavam-nos. Mas tinham
como norma libertar todos os soldados governamentais capturados e jamais
cometiam atrocidades contra a população local. Era um brutal contraste com o
comportamento das tropas regulares, que torturavam e executavam os rebeldes
aprisionados, além de, frequentemente, prenderem, torturarem ou assassinarem
civis como tática de intimidação. Os rebeldes também conquistaram muitos
corações ao assumirem princípios democráticos e bandeiras empunhadas outrora
pelo poeta e herói nacional José Martí.
Ao longo daquele ano, as forças rebeldes cresciam
lentamente em combates e confiança. Sobreviveram a emboscadas, ataques aéreos,
deserções, traições dos guias camponeses e ao desmoralizante efeito da vida
isolada nas montanhas. Reforços chegavam das cidades. À semelhança de Fidel,
Guevara e quase todos os homens vindos no Granma eram oriundos da classe média.
Mas também camponeses, quase sempre pobres e analfabetos, começavam a aderir à
guerrilha, transformando-a em uma força representativa da população em geral, o
que lhe dava nova respeitabilidade. Pelo final do ano, as forças de Fidel
controlavam Sierra Maestra.
Guevara, por sua vez, emergira como um dos homens
mais importantes do exército rebelde. Além de ser o médico da tropa, tomava
parte em combates, algumas vezes comandando unidades. Em 12 de julho de 1957,
seis semanas após a vitória na batalha de El Uvero, Castro concedeu a Guevara a
patente de comandante, posto que até então apenas ele próprio possuía, e o
colocou no comando da Segunda Coluna d Exército rebelde.
“Era um prazer olhar para nossa tropa. Perto de
duzentos homens bem disciplinados, com moral alto e dispondo de boas armas,
algumas delas novas. A mudança qualitativa era, agora, evidente na Sierra.
Tratava-se de um verdadeiro território libertado: medidas de segurança não eram
necessárias, e havia um pouco de liberdade para ficar conversando à noite,
enquanto descansávamos em nossas barracas. Foi dada autorização para ir as
vilas da Sierra e estabelecer um relacionamento mais íntimo com o povo”,
escreveu Guevara.
|
Esta foto rara mostra o Alto Comando rebelde em Sierra Maestra, em 1957. Guevara (o segundo a partir da esquerda) era o médico da tropa, mas foi promovido a comandante por Fidel (no centro). |
Depois de quase um ano na Sierra, os rebeldes tinham
conquistado o apoio dos camponeses. Em toda parte na ilha surgiram protestos
contra o governo, alguns ligados aos rebeldes, mas muitos totalmente
independentes e espontâneos. Em março, estudantes lançaram um fracassado ataque
contra o palácio presidencial em Havana. Em Santiago de Cuba, onde os combates
eram frequentes e violentos, Frank País foi assassinado. Em setembro, um motim
naval, reforçado por combatentes do Movimento 26 de julho, espocou em
Cienfuegos. Em outubro, um governo provisório foi formado em Miami por
proeminentes exilados cubanos. Sentindo que o poder lhe escapava, Batista
reagiu com crescente brutalidade.
Em março de 1958 as atrocidades cometidas pelas
forças do governo levaram os EUA a suspender a venda de armas a Cuba, criando
um problema adicional para o grande, mas mal equipado e pobremente adestrado e
liderado exército de Batista. As forças de Fidel, agora em torno de trezentos
combatentes, estavam bem entrincheiradas. Ele e Guevara tinha criado fábricas
de munição, escolas, clínicas, cozinhas coletivas, oficinas de trabalho, um
jornal e uma estação de rádio na região. Terra havia sido dada aos camponeses,
que agora se sentiam livres das arbitrariedades da Guarda Rural.
Em suas reflexões sobre a vitória final do exército
rebelde, Guevara escreveu: “A ditadura criara o necessário fermento, com sua
política de opressão das massas e manutenção de um regime de privilégios.
Privilégios para os servos do regime, para os latifundiários parasitas e
comerciantes; privilégios para os monopólios estrangeiros. Uma vez que o
conflito começou, as medidas repressivas do governo e sua brutalidade, em lugar
de diminuírem a resistência popular, fortaleceram-na. A desmoralização e a
falta de vergonha da casta militar facilitaram a tarefa. A rudeza das montanhas
em Oriente mais ineptas táticas do inimigo também fizeram sua parte. A guerra,
contudo, foi vencida pelo povo, por meio da ação de sua vanguarda armada, o
exército rebelde, cujas armas básicas eram seu moral e disciplina”.
Guevara descreve o primeiro ano da guerra
revolucionária como a “fase nômade”, caracterizada pela constante mobilidade
dos rebeldes. Quando Sierra Maestra estava firmemente em suas mãos, começou um
novo estágio. Em abril de 1958, as forças anti-Batista nas planícies e cidades
convocaram uma greve geral, imaginando que ela fosse capaz de colocar o ditador
a correr. No entanto, o movimento fracassou. Em maio, o governo subiu às
montanhas com 10. 000 homens, apoiados por tanques e aviões. A ofensiva durou
quase dois meses, mas o exército de Batista, desorganizado e conduzido por
oficiais ineptos, estava fora de seu território nas montanhas. Incapaz de
localizar os rebeldes, limitou-se a bombardear vilas e fazendas, matando
dezenas e civis.
Em agosto, o exército regular estava em franca
retirada. Fidel já planejava sua própria ofensiva final para tomar o controle
das grandes cidades. “A guerra de guerrilha deixou de existir”, anunciou.
“Isto, agora, tornou-se uma guerra de posições e movimentos”. O comandante
rebelde pretendia descer das montanhas e enfrentar o exército de Batista em
campo aberto. Fidel e Raul Castro marcharam com duzentos homens para Santiago
de Cuba, onde receberiam o reforço de outros seiscentos guerrilheiros para
tentar ocupar a cidade. Enquanto isso, Che Guevara, com 148 homens, atravessava
a província de La Villas, em direção às montanhas Escambray e à cidade de Santa
Clara. Camilo Cienfuegos comandava uma coluna de 82 homens, movendo-se
paralelamente às forças de Guevara. O alvo deles era Havana.
Guevara e Cienfuegos começaram a marcha com caminhões
recém-capturados, mas um ataque aéreo destruiu a frota já no primeiro dia.
Viajando a pé e apenas durante a noite, para evitar emboscadas, as duas colunas
ficavam, frequentemente, dias sem comer. Depois de uma marcha extremamente
difícil de sete semanas, chegaram a Las Villas, no centro da ilha, onde se
reuniram a grupos de estudantes, outras unidades guerrilheiras do Movimento 26
de julho e militantes comunistas.
|
Soldados do Exército cubano preparam um ataque às forças guerrilheiras. Apesar das denúncias de atrocidades cometidas pelos homens de Batista, os Estados Unidos continuaram armando seu exército até quase a queda do ditador. |
Dirigentes
locais de 26 de julho criaram objeções à presença dos comunistas. “Finalmente”,
de acordo com o historiador britânico Hugh Thomas, “no decorrer de acalorada
discussão, Guevara disse que havia um abismo político entre ele e o Movimento
26 de julho e que, se naquele momento estavam unidos na luta contra Batista,
cedo ou tarde trilhariam caminhos separados”.
Batista havia convocado eleições para novembro,
pretendendo colocar um presidente fantoche, enquanto mantinha o poder real.
Fidel advertiu que qualquer um que votasse naquelas eleições poderia ser
condenado a trinta anos de prisão ou à morte. Em Las Villas, a presença de
Guevara e Cienfuegos foi suficiente para manter os eleitores longe das urnas e,
em toda a ilha, menos de 30 % dos cubanos votaram.
Em dezembro, Guevara recebeu a missão de cortar em
duas ilhas, tomando toda a província de Las Villas. Em questão de dias, ele
conquistou uma série de brilhantes vitórias táticas, que lhe garantiu o
controle de toda a província, exceto sua capital, Santa Clara. Defendida por
mais de 2. 000 soldados, a cidade contava com apoio aéreo e um trem blindado.
Guevara tinha só duzentos homens. Os arredores de Santa Clara caíram rapidamente,
com as tropas governamentais evitando o combate. O controle do centro, porém,
custou três dias de combates, casa por casa, até que o exército regular se
rendeu. Com a queda de Santa Clara, não havia nada entre os rebeldes e Havana.
|
Camilo Cienfuegos, um dos líderes originais do Movimento 26 de julho, conduz sua unidade de cavalaria durante as celebrações da vitória em Havana. Ele morreu em um acidente suspeito pouco depois. |
Santiago de Cuba continuava cercada pelas forças de
Fidel e Raul Castro, e o comandante militar da cidade telefonou para Batista,
avisando que não poderia manter a cidade por muito tempo. A esmagadora vitória
de Guevara em Santa Clara, completada no dia 31 de dezembro de 1958, somada à
iminente entrada de Fidel em Santiago de Cuba, soava como o sino da morte para
o regime de Batista. Seu exército estava em desintegração e nada mais havia a
fazer. Às três horas da madrugada de 1° de janeiro, o ditador embarcou em um
avião no aeroporto de Havana e voou para a República Dominicana. Prudente, já
transferira para o exterior uma fortuna estimada em 800 milhões de dólares,
amealhada em anos de saque do tesouro nacional.
|
Guevara presidindo um dos tribunais revolucionários que julgaram centenas de pessoas acusadas de crime de guerra. Pelo menos duzentos réus foram considerados culpados de assassinato e tortura, e executado. |
Quando a fuga de Batista foi anunciada pelas rádios
cubanas, Fidel convocou uma greve geral para o dia seguinte, para resistir a
qualquer tentativa de golpe de Estado. Como pretendia tomar Santiago de Cuba,
ordenou a Guevara e Cienfuegos que marchassem para Havana. O comandante da
revolução entrou em Santiago no dia 2 de janeiro e, pouco depois, Guevara e
Cienfuegos percorriam Havana para assumir o controle das instalações militares
e prevenir qualquer reação do Exército. A guerra tinha terminado, e Fidel pôde
começar sua lendária marcha triunfal de uma ponta a outra de Cuba, fazendo
discursos e entusiasmando a multidão. Contra todas as dificuldades, Fidel,
Guevara e o exército rebelde tinham vencido a fase militar da revolução cubana.
Agora, os revolucionários tinham pela frente o igualmente espinhoso problema de
criar uma nova sociedade.
Capítulo 3: Em busca de um
“Novo Homem”
A guerra revolucionária cubana fora relativamente um
conflito em pequena escala, mas, ainda assim, sangrenta. Segundo números
publicados dez dias depois da fuga de Batista, novecentas pessoas haviam
morrido em combate, cerca da metade delas rebeldes, simpatizantes ou civis. Em
compensação, as forças governamentais tinham matado centenas de camponeses no
interior, elevando o número de vítimas para cerca de 2. 000, um número
respeitável em um país de 6,5 milhões de habitantes.
No dia seguinte à vitória, Fidel e Guevara estavam
extremamente preocupados com a possibilidade de o poder militar remanescente
tentar um golpe de Estado. Isso já acontecera em outras ocasiões na América
Latina, e Guevara ainda tinha bem viva na memória a derrubada do presidente
Arbens, da Guatemala. Para impedir qualquer aventura, Fidel colocou seus homens
no controle das principais instalações militares, disposto a substituir o
exército regular pelo exército rebelde o mais rápido possível. Também decidiu
impor a pena de morte para os soldados de Batista acusados de crime de guerra.
Tribunais revolucionários começaram imediatamente a realizar julgamentos, e
Guevara, que fizera centenas de prisões quando entrou em Havana, assumiu a
responsabilidade pelos processos na capital. Raul Castro ficou com os tribunais
em Santiago de Cuba – existe a versão de que as tropas de Raul fuzilaram
dezenas de prisioneiros quando entraram na cidade.
Fidel exortou o povo cubano a não ceder à violência
das turbas ou à vingança pessoal, como tinham feito em 1933. Naquele ano,
depois da queda da ditadura Machado, centenas de machadistas foram assassinados
por multidões ensandecidas. Os cubanos atenderam ao apelo de Fidel, embora os
ânimos estivessem exaltados com os relatos de torturas e atrocidades cometidas
pelos homens de Batista. A verdade é que, nos dez dias que se seguiram à
derrubada do ditador, cem colaboradores do antigo regime, quase todos militares
e policiais, foram condenados em processos sumários, e executados.
No dia 10 de janeiro, porém, tribunais
revolucionários foram formalmente criados. Nem por isso os julgamentos deixaram
de ser rápidos, durando apenas alguns dias. Presidido por oficiais rebeldes,
permitia-se ao acusado defender seu caso. Alguns confessaram, outros foram
condenados à prisão, uns poucos foram libertados. Contudo, os considerados
culpados de assassinato ou tortura – cerca de duzentos – foram executados.
Em um caso famosos, por exemplo, o major Jesús Sosa
Blanco, que Herbert Matthews descreve como “um dos piores torturadores e
matadores do regime Batista”, foi julgado em um espetáculo público realizado em
um estádio de Havana e transmitido pela televisão. Enquanto testemunhas
relatavam os crimes de Sosa, milhares de espectadores gritavam “assassino”.
Sosa reclamou à Corte que o julgamento parecia “um circo romano”. Ele foi
considerado culpado e executado. Matthews, que estava em Cuba naquele momento,
escreve: “Nem antes nem depois, ouvi ou li a respeito de um inocente condenado”.
Mas outros observadores, incluindo o secretário de Estado dos EUA, Foster
Dulles, e muitos repórteres de jornais europeus e norte-americanos denunciaram
os tribunais revolucionários como sendo uma encenação de justiça.
|
O major Jesús Sosa Blanco(de perfil), um comandante militar de Batista, em seu julgamento em 1959 ouve o testemunho de uma mulher que o acusa de haver matado seu filho durante a guerra. Apesar das pressões internacionais por sua libertação, Sosa foi considerado culpado e executado. |
Os tribunais e as execuções logo terminaram, e Fidel
baniu a pena de morte da legislação cubana, ainda que ela tenha sido
restabelecida dois anos depois, quando o país foi invadido por
contrarrevolucionários. O governo de Cuba, de fato, estava começando. O
presidente Manuel Urrutia formara seu próprio gabinete, incluindo apenas dois
revolucionários.
Fidel assumiu o cargo de primeiro-ministro, e Guevara
e outros revolucionários permaneceram formalmente longe das decisões, apesar
de, na realidade, ser eles quem detinham o poder, apesar de, na realidade, ser
eles quem tinham o poder. Fidel aparecia na televisão todas as noites, para
explicar ao povo trabalhador da revolução, a ponto de ser identificado, aos
olhos da população, com o processo revolucionário em si. Ele, Guevara e outros líderes
rebeldes bem articulados também faziam frequente discursos e aparições
públicas, expondo metas e estratégias da revolução.
Talvez o mais significativo discurso tenha sido
pronunciado por Guevara, quando, em 27 de janeiro de 1959, falou sobre “Os Ideais
Socialistas do Exército Rebelde”. Começou explicando que a experiência dos
rebeldes com os camponeses em Sierra Maestra produzira o conceito de reforma
agrária, que descreveu como “o primeiro grande tema social” da revolução,
acrescentando que “a justiça social que distribuição das terras produz”.
Guevara também falou da necessidade de diversificar a agricultura cubana, de
modo a diminuir a dependência do açúcar como principal produto de exportação, e
da urgência do desenvolvimento industrial, para reduzir a dependência da
importação de produtos manufaturados.
|
Oficiais revolucionários ouvem depoimentos em um tribunal, em janeiro de 1959. Os julgamentos eram feitos, em geral, por dois ou três guerrilheiros, um assessor jurídico e um cidadão local. |
Tal industrialização, argumentou, exigiria uma frota
mercante, eletricidade e modernas estradas e sistemas de comunicação. Já que os
empreendimentos privados nesses setores-chave eram inadequados ou inexistentes,
eles teriam de ser nacionalizados. Para todos os efeitos, Guevara estava
pedindo o socialismo. Dois outros pontos do discurso do comandante
revolucionário foram de crucial importância para a revolução da sociedade
cubana. Ele pediu a criação de um novo exército popular. “Todo o povo cubano”,
sugeriu, “deve tornar-se um exército guerrilheiro (...) Todos os cubanos
precisam aprender a manejar e, se necessário, usar armas de fogo em defesa da
nação”.
Um fantasma assustava Fidel e Guevara: os Estados
Unidos. Sabiam que Washington não tolerava governos que ameaçassem os
interesses norte-americanos, sobretudo os socialistas. Sabiam, também, que os
EUA não veriam com bons olhos um regime socialista a apenas 150 quilômetros de
sua costa e que seriam capazes de patrocinar um golpe direitista ou enviar suas
próprias tropas.
Naquele discurso famoso, Guevara alinhavou, ainda,
sua visão da revolução cubana como o início de um processo revolucionário
através da América Latina. A revolução cubana, ele disse, “não está limitada à
nação cubana, porque ela está tocando a consciência da América Latina (...)
está colocando os ditadores da América Latina no corredor da morte, porque
eles, como os monopólios estrangeiros, são os inimigos do governo popular”.
|
Guevara toma posse como presidente do Banco Central, em novembro de 1959. Ele imediatamente converteu o dinheiro cubano em alvo da curiosidade internacional por assinar as notas com seu apelido "Che". |
As linhas mestras do desenvolvimento político e
econômico de Cuba pelos cinco anos seguintes foram fixados naquele momento.
Menos de duas semanas mais tarde, Fidel anunciou que seu governo tinha decidido
conceder cidadania cubana a Che Guevara por seus serviços prestados à revolução
e como um passo legal para capacitá-lo a ocupar postos ministeriais.
Agora, Guevara já estava claramente identificado como
socialista, coisa que Fidel ainda não tinha feito. Ao longo da guerra
revolucionária, ele negara ser socialista ou comunista, e mesmo os seus
críticos concordavam que estava sendo sincero. Em 16 de janeiro de 1959, duas
semanas depois da vitória rebelde, ele viajou pelos Estados Unidos e negou
diversas vezes qualquer simpatia pelo comunismo. O Partido Comunista de Cuba,
na verdade, só pegara o trem da revolução dois meses antes da vitória – até
então costumava chamar Fidel de aventureiro.
Em contraste, Guevara já exibira ideias marxistas
antes do discurso do dia 27. Embora jamais tenha sido membro de um partido
comunista e tivesse sérias divergências com as táticas ortodoxas dos PCs
latino-americanos, já era um homem versado em Marx e Lênin quando chegou a
Sierra Maestra. Para todos os efeitos, parecia que não seria Fidel, mas
Guevara, seu mais íntimo colaborador, que conduziria Cuba para um política
esquerdista.
|
No dia 10 de julho de 1960, Guevara discursava para 100. 000 trabalhadores reunidos diante do palácio presidencial para denunciar a "agressão econômica" norte-americana. Três dias antes, o presidente Eisenhower tinha cortado as compras de açúcar cubano, a principal fonte de divisas do país. |
Na primavera de 1959, Guevara, enfermo e exausto, foi
confinado por ordem médica em sua casa em um subúrbio de Havana. Ali, ele foi o
anfitrião de uma série de encontros secretos, a que compareceram Fidel e Raul
Castro, além de outros membros-chave de hierarquia revolucionária. A portas
fechadas, foram feitos os planos para afastar os políticos moderados do governo
e para socializar a economia cubana. Eles concordaram que a reestruturação da
agricultura deveria ter prioridade, e Guevara foi encarregado de colocar no
papel as novas leis agrárias.
A Lei da Reforma Agrária, redigida por Guevara, foi
promulgada em 17 de maio de 1959, limitando o tamanho das propriedades rurais a
quatrocentos hectares, ainda que uns poucos empreendimentos realmente
produtivos pudessem ter até 1. 350 hectares. Qualquer porção além desses
limites seria expropriada pelo governo e entregue aos camponeses em parcelas de
27 hectares ou reunidas em fazendas coletivas administradas pelo Estado. Também
ficou estabelecido que estrangeiros não poderiam mais possuir plantações de
açúcar. Para administrar a lei, uma nova agencia governamental foi criada: O
Instituto Nacional de Reforma Agrária, INRA.
O governo prometeu indenizar os proprietários
expropriados, mas, ainda hoje, não está claro se realmente pensava em honrar
tal compromisso. O assunto era quente também em Washington, pois as corporações
norte-americanas acabavam de perder 200. 000 hectares de solo cubano. A
comunidade financeira em Wall Street reagiu com acidez à nova legislação,
fazendo coro às famílias ricas de Havana. Em discursos nos dias 21 e 22 de maio,
Fidel reafirmou que, apesar do caráter socializante da reforma agrária, ele
ainda se opunha ao comunismo. No dia 30 de junho, o novo chefe da Força Aérea,
Pedro Días Lanz, convocou uma entrevista coletiva para advertir que Cuba
poderia cair nas mãos de uma ditadura comunista. Fidel atacou violentamente
Díaz, que renunciou e fugiu para os Estados Unidos.
Duas semanas mais tarde, o presidente Urrutia
pronunciou discurso atacando o PC cubano e convidou Fidel a seguir-lhe o
exemplo, mas ouviu uma sonora recusa. “Não considero inteiramente honrado que,
para não sermos chamados de comunistas, nós precisemos embarcar em campanhas
contra eles ou ataca-los”, justificou Fidel. No dia 17 de julho, ele renunciou
ao cargo de primeiro-ministro, chocando o país. Naquela noite, fez um longo
discurso pela televisão, denunciando Urrutia. Uma enorme multidão reuniu-se
diante do palácio presidencial exigindo a renúncia do presidente, mesmo antes
de Fidel terminar seu pronunciamento. No dia seguinte, Urrutia renunciou. Dez dias
depois, Fidel, já pronto para abraçar o comunismo, reassumiu seu cargo – o povo
cubano respondeu com selvagem entusiasmo.
O INRA logo se converteu no mais importante organismo
do país, com Fidel como presidente. Guevara fora nomeado ministro da Indústria,
o que, na prática, o tornava o encarregado da industrialização de Cuba. Ambos
estavam usando o INRA para garantir o virtual controle da vida econômica e
política da nação. O INRA já possuía sua própria milícia, 100. 000 pessoas
empregadas inicialmente para ajudar o governo a controlar a expropriação e
distribuição de terras, mas logo treinada como um exército regular. O organismo
também financiava a construção de estradas, construía residências rurais e até
balneários turísticos, que Guevara considerava instrumentos de seu plano de
industrialização.
|
Guevara visita pela primeira vez a União Soviética, em novembro de 1960. Como resultado da visita, Moscou concordou em fornecer ajuda econômica e substituir os Estados como principal parceiro comercial de Cuba. |
Cuba estava, agora, percorrendo com rapidez o caminho
do socialismo. “Há uma grande diferença entre desenvolvimento de livre
iniciativa e o desenvolvimento revolucionário”, explicava Guevara. “Em um
deles, a riqueza é concentrada nas mãos de poucos afortunados, os amigos do
governo, os vendedores mais espertos. No outro, a riqueza é patrimônio do
povo”. Os programas governamentais eram populares entre os cubanos, já que
significavam aluguéis mais baratos, telefones e eletricidade a preços menores e
propiciavam um certo sentimento de orgulho, pois o povo estava assumindo o
controle de sua vida econômica e política, livre da dominação estrangeira.
Em novembro de 1959, Guevara foi nomeado presidente
do Banco Central, que reforçou seu controle sobre a economia. De imediato, ele
fez a fama da moeda cubana, ao assinar as notas com um simples “Che”. Um de
seus primeiros compromissos foi negociar um tratado de venda de açúcar com a
União Soviética, em fevereiro de 1960. Moscou aceitou comprar 1 milhão de
toneladas de açúcar anualmente até 1965, por um preço fixo. Os países do Leste
europeu também concordaram em comprar açúcar cubano. Em julho, ele fechou um
acordo similar cm a República Popular d China. Todos esses acordos tornavam
inócuas as ameaças norte-americanas de suspender as compras do produto cubano.
Em casa, Guevara apressava-se em terminar o
planejamento da economia, trabalhando frequentemente até a madrugada. Ele
ajudou a criar o órgão de planejamento central, que, controlaria o cotidiano da
economia e tornou-se um de seus cinco dirigentes. Ao mesmo tempo, participou da
elaboração do plano de nacionalizações que transferiu para o Estado toda a
indústria de base pertencente a corporações estrangeiras.
Como seu biógrafo Daniel James conclui, “Che estava
agora no auge de seu poder. Como ministro da Indústria, ele era o virtual czar
da economia cubana, com todo o peso político que isso significava (...) Che
tinha, também, despontado como um teórico, o campeão da revolução
latino-americana dos países subdesenvolvidos da África e Ásia, um poderoso
aliado do ‘campo socialista’ e um intransigente combate contra o ‘imperialismo
ianque’. Ele tinha emergido, em suma, como um estadista revolucionário de
estrutura mundial”.
No final de 1960, Guevara usou sua autoridade para
tocar adiante a diversificação agrícola e industrial que propusera em seu
discurso no ano anterior. Ao mesmo tempo, em outro projeto disparado por Fidel
e Guevara, o governo cubano investiu em campanhas de saúde e educação. O ano de
1961 foi proclamado o “da Educação”. Centenas de estudantes e professores foram
enviados para o campo com a missão de alfabetizar os camponeses. A campanha foi
um sucesso. Antes de 1959, a taxa de analfabetismo oscilava entre 24 e 30%, e
faltavam escolas e professores. No final da campanha, mais de 700. 000 adultos
tinha aprendido a ler e escrever, baixando para 3,9% a taxa de analfabetismo.
Novas escolas foram construídas por todo o país, novos professores foram
contratados.
|
Soldado cubano observar a base militar norte-americana de Guantánamo, na costa sul de Cuba. No começo de 1961, já com a inva~soa da ilha em preparação. os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Havana. Guantánamo ainda está em mãos dos norte-americanos, apesar das objeções do governo cubano. |
Com tais programas seguindo em frente, Fidel aparecia
regularmente na televisão para explicar o que o governo estava fazendo e por
que. Guevara também fazia discursos na televisão com frequência. Em abril de
1960, ele inaugurou a série A Universidade do Povo, explicando a reorganização
da economia do país. Uma economia baseada no planejamento central, argumentou,
exige o controle do Estado sobre os meios de produção. Este era, disse, “o
conceito socialista de economia”. A nova economia deveria significar o fim dos
monopólios privados, os quais, em Cuba, “tinham laços muito estreitos com os
EUA”, disse Guevara. “Em outras palavras, nossa guerra econômica será com o
grande poder do Norte”.
Depois de detalhar as dificuldades de reorganizar a
economia, Guevara disse que “o fundamental é que esse trabalho seria impossível
sem duas coisas: a determinação do país em fazê-lo e a ajuda dos países
socialistas”. Ele insistiu na necessidade de mudar a consciência individual e
os valores, de modo a produzir melhores cidadãos e trabalhadores. A revolução,
em suma, geraria o “novo homem”, um ser desprovido do egoísmo e da mesquinhez
características da sociedade capitalista. Como o biógrafo John Gerassi
escreveu, “a principal preocupação de Che era criar Homem Socialista em Cuba
(...) Che sentiu que a economia socialista por si só não valia o esforço, o
sacrifício e os riscos da guerra e da destruição se os fins encorajassem as
ambições individuais às custas do espírito coletivo”.
Com tal visão, Guevara exortou os cubanos a
trabalharem duro, a mergulharem fundo na revolução e a desenvolverem uma nova
escala de valores, que colocasse o interesse da sociedade cubana como um todo
acima das preocupações individuais. Para estimular a produtividade, ele propôs
“incentivos morais”, a fim de premiar os indivíduos que se sobressaíssem no
trabalho e em consciência social.
Seus críticos, contudo, acusam o sistema econômico de
Guevara de ser idealístico só na superfície, pois, na realidade, se trataria de
um sistema destinado a manter estreito controle sobre os trabalhadores. Cada
trabalhador precisava cumprir uma determinada cota de produção. E os
“incentivos morais” eram usados em substituição aos aumentos de salário,
abolidos por Guevara. Assim, caso excedesse sua cota, o trabalhador não recebia
mais dinheiro, mas um certificado de congratulações. Em contraste, quem não
cumprisse sua cota perdia parcelas de seu salário.
Uma crítica ao planejamento central criado por
Guevara é a de que via o trabalhador como nada mais do que um instrumento do
Estado. O próprio Guevara disse que, sob o socialismo cubano, o trabalhador
tinha “o dever e o direito de garantir que todas as grandes linhas de
desenvolvimento estabelecidas pelo governo estavam sendo cumpridas”. Em
qualquer lugar, ele sustentou, era necessário “impor o princípio da autoridade”
aos trabalhadores. O jornalista francês Léo Sauvage, em seu livro Che Guevara:
O fracasso de um revolucionário, comentou que tais declarações marcaram o
ministro da Indústria como um “membro de um todo-poderoso Estado, de um partido
obedecido à risca”.
|
Em pé, escolares cubanos reafirmaram seu engajamento com a revolução. Em 1961, Guevara foi um dos principais artífices do ambicioso programa de reforma educacional que praticamente eliminou o analfabetismo em Cuba. |
Fossem quais fossem os méritos e desméritos dos
princípios dos princípios econômicos de Guevara, seus programas terminaram em
retumbantes fracassos. Mas tanto seus defensores quanto seus detratores
concordam que um importante fator contribuiu enormemente para que as coisas
dessem erradas: a brutal hostilidade dos Estados Unidos.
|
Em 1960, Guevara viajou pela Tchecoslováquia, China e Coreia do Norte assinando acordos comerciais e alarmando o governo dos Estados Unidos, que já via Cuba como uma cabeça-de-ponte comunista no hemisfério ocidental. |
Capítulo 5: Baía dos Porcos
e a crise dos mísseis
Os Estados Unidos e Cuba estavam em acelerada rota de
colisão. As relações entre os dois países começaram a degenerar já nos
primeiros dias da revolução. Em 10 de março de 1959, meses antes de Fidel
consolidar seu poder, tornar pública suas intenções ou tomar qualquer
propriedade norte-americana, Conselho de Segurança Nacional, em Washington,
estava discutindo como “conduzir outro governo ao poder” e colocar a correr
Guevara e os outros revolucionários.
A presença de comunistas no governo cubano alarmou os
Estados Unidos, e particularmente irritante era o papel destacado de Guevara. Já
reconhecido como marxista, Che era a mais fulgurante figura da diplomacia
cubana, fazendo frequentes visitas aos países comunistas. Era também o
arquiteto da nova economia socialista e, na primavera de 1960, o responsável
pelo treinamento das Forças Armadas. Tal combinação convencia Washington de que
Cuba marchava a passos largos para o comunismo.
O governo norte-americano também não conseguiu
digerir a perda do controle direto sobre a ilha. “Até Castro, os EUA eram tão
influentes em Cuba que o embaixador norte-americano era o segundo homem mais
importante, algumas vezes até mais importante do que o presidente (cubano)”,
disse o ex-embaixador em Havana Earl Smith, em depoimento ao Senado, em 1960.
Reagindo à decretação da Lei da Reforma Agrária em
1959, a Casa Branca primeiro insistiu que Cuba indenizasse os proprietários
norte-americanos pelo valor de mercado das terras confiscadas e, para mostrar
sua determinação, diminuiu suas compras de açúcar cubano. Em maio e junho de
1960, as refinarias de propriedade norte-americana em Cuba recusaram-se a
processar petróleo soviético comprado por Havana. Fidel retaliou encampando as
empresas. Os Estados Unidos contra-atacaram suspendendo totalmente as compras
de açúcar. Durante este período, aviões partiam da Flórida, pilotados por
exilados cubanos, e sobrevoaram a ilha despejando panfletos anticastristas – e,
ocasionalmente, bombas – enquanto as autoridades norte-americanas olhavam para
outro lado.
|
Quando John Kennedy (à esquerda) sucedeu a Eisenhower (à direita) em 1961, herdou o plano de invadir Cuba. O novo presidente deu luz verde à CIA para seguir em frente com a aventura. |
Houve uma escalada na tensão em outubro de 1960,
quando Fidel nacionalizou mais de trezentas empresas, muitas delas de
proprietários norte-americanos. Washington respondeu com um embargo econômico,
tornando impossível para Cuba comprar produtos e peças de reposição
norte-americanos. Havia rumores – confirmados mais de uma década depois em
audiências no Senado – de que a CIA começara a fazer planos para assassinar
Fidel. Foi nessa altura que o serviço secreto norte-americano, agindo por ordem
do presidente Eisenhower, começou a treinar exército de exilados para invadir Cuba.
|
O diretor da CIA, Allen Dulles, irmão do secretário de Estado John Foster Dulles, foi um dos mentores do golpe militar de 1954 n Guatemala. Em 1960 e 1961, Allen supervisionou o treinamento dos exilados cubanos que tentaram derrubar Fidel Castro. |
Havia forte contingente de exilados cubanos vivendo
nos EUA, sobretudo em Nova York e Miami, que pressionava por uma invasão.
Alguns eram direitistas partidários do regime de Batista, outros moderados e
liberais que tinham apoiado Fidel durante a revolução, mas estavam agora
descontentes com o crescente controle esquerdista do governo. O plano de
Eisenhower era treinar uma força de exilados para uma invasão que repetisse a
bem-sucedida operação da CIA na Guatemala, em 1954. Quando John F. Kennedy foi
empossado presidente, em janeiro de 1961, herdou o plano de invasão, deu seu
consentimento e mandou seguir em frente.
Um dos últimos atos de Eisenhower como presidente foi
romper relações diplomáticas com Cuba, limpando o caminho para Kennedy iniciar
a ação militar. Em 14 de abril de 1961, uma força de 1. 500 homens deixou
Puerto Cabezas, na Nicarágua, a bordo de seis navios. O plano era invadir Cuba
pela baía dos Porcos, um vasto mangue na costa centro-sul da ilha. Depois da
tropa de exilados estabelecer uma cabeça-de-ponte, a CIA desembarcaria um novo
governo formado no exílio com o devido reconhecimento, ajuda e apoiou dos
Estados Unidos.
Mas espiões cubanos tinham se infiltrado na
comunidade exilada, e Fidel conhecia os detalhes da invasão. Para defender
Cuba, o país foi dividido em três comandos regionais. Raul Castro ficou com a
parte Leste; Guevara cuidou do Oeste; e Juan Almeida, outro líder guerrilheiro
dos dias na Sierra Maestra, assumiu o Centro. Fidel Castro era o
comando-em-chefe.
|
Cuba, o maior país do Caribe, fica a somente 150 quilômetros da costa dos Estados Unidos. A proximidade geográfica e uma longa história em comum transformaram Cuba em uma obsessão para os governos Eisenhower e Kennedy. |
Um dia antes da invasões, um navio de guerra
abarrotado de fuzileiros navais norte-americanos simulou uma invasão em Pinar
del Rio, na costa ocidental, colocando em alerta as forças comandadas por
Guevara. Enquanto isso, oito bombardeiros B-26, pertencentes à CIA, atacavam
aeroportos cubanos. Mas esses velhos aparelhos da Segunda Guerra Mundial
infligiram poucos danos. Na noite de 17 de abril, o desembarque começou de
forma caótica sob o comando de agentes da CIA.
A força de exilados – desorganizada, atirando muitas
vezes contra seus próprios homens e submetida a severos ataques aéreos – foi
contida já na praia pela feroz resistência. Qualquer esperança de que o ataque
pudesse incentivar um levante da oposição dentro de Cuba evaporou-se quando
Fidel ordenou a prisão de 100. 000 suspeitos de serem contrarrevolucionários.
Depois de três dias de combates, a força invasora rendeu-se – tinha sofrido 129
mortes e 1. 200 homens foram feitos prisioneiros.
|
Soldados do exército cubano marcham em direção à baía dos Porcos para enfrentar a invasão de exilados em abril de 1961 |
Guevara não desempenhou nenhum papel pessoal nos
combates, mas Tad Szulc, em sua explicação da vitória castrista, concede-lhe um
crédito parcial: “Os revolucionários venceram porque a estratégia de Fidel era
enormemente superior à da CIA, pois o moral revolucionário estava alto e porque
Che Guevara, como chefe do Departamento de Instrução das Forças Armadas
Revolucionárias, com a responsabilidade de treinar as milícias (...) tinha
feito um excelente trabalho, preparando 200. 000 homens e mulheres para a
guerra’.
Duas semanas depois da vitória na Baía dos Porcos,
Fidel pela primeira vez definiu explicitamente sua revolução como socialista.
“A luta em nosso país é pelo socialismo”, sentenciou em discurso. Depois disso,
ele abertamente se definiu como um socialista.
|
Milicianos cubanos combatem na baía dos Porcos. Em 72 horas, as forças cubanas esmagaram os invasores, matando 120 e capturando 1. 200 exilados. O trabalho de treinamento das milícias, dirigido por Guevara, demonstrara sua eficácia. |
A invasão da baía dos Porcos consolidou a convicção
de Guevara de que a preocupação dos EUA na América Latina era defender os
interesses econômicos norte-americanos, sem levar em consideração a soberania
de cada país. Ele havia testemunhado o golpe armado pela CIA na Guatemala, o
apoio de Washington ao governo Batista, o embargo econômico contra Cuba e,
agora, a tentativa de derrubar o regime cubano. Não havia dúvidas, no seu
entender, de que os EUA eram o inimigo da liberdade na América Latina.
Em 1962, ciente de que os Estados Unidos continuavam
dispostos a derrubar seu governo, Fidel pediu ajuda militar à União Soviética. Na
primavera daquele ano, Guevara e Raul Castro foram diversas vezes a Moscou
discutir possível apoio militar. Os detalhes das negociações entre cubanos e
soviéticos ainda são desconhecidos, mas parece que o premiê Nikita Kruschev
concordou em fornecer aviões de combate MIG e outros equipamentos bélicos
avançados, para a satisfação de Guevara e Raul.
Mais complexa foi a decisão soviética de instalar
mísseis nucleares em Cuba. Naquele tempo, a União Soviética estava atrás dos
Estados Unidos em armamento nuclear e defrontava-se com a presença de mísseis
norte-americanos na Turquia, junto à fronteira soviética. A presença dessas
armas poderia ser contrabalançada instalando seus próprios mísseis a 150 quilômetros
da costa dos Estados Unidos. A ideia parece ter sido dos cubanos, acreditando
que a presença de armas nucleares na ilha serviria de dissuasão para qualquer
outra invasão.
|
Soldados cubanos celebram a vitória na baía dos Porcos, em 19 de abril de 1961 |
Em outubro de 1962, aviões espiões norte-americanos
detectaram a presença dos mísseis soviéticos em Cuba. Kennedy tornou pública e
exigiu a retirada das armas. A queda-de-braço que se seguiu ficou conhecida
como a Crise dos Mísseis e levou o mundo às fronteiras da guerra nuclear.
Durante vários e tensos dias, Kennedy e Kruschev negociaram, com seus países em
estado de alerta máximo. Em 22 de outubro, os EUA concentraram uma grande força
de fuzileiros navais na Flórida, pronta para iniciar a invasão de Cuba. E
Kennedy apareceu na televisão para pronunciar um discurso crucial: anunciou o
bloqueio naval de Cuba para impedir a chegada de mais mísseis soviéticos e
exigiu novamente a retirada de todo arsenal nuclear do solo cubano. Se os
soviéticos recusassem remover o armamento, advertiu, os Estados Unidos não
hesitariam em lutar uma guerra nuclear.
Era evidente que Kruschev só tinha duas opções:
aceitar uma guerra nuclear ou bater em retirada. No dia 28, concordou em levar
embora os mísseis em troca da remoção das armas nucleares norte-americanas na
Turquia e do compromisso de que os Estados Unidos não invadiriam Cuba. A crise
estava contornada, mas Fidel ficou furioso, pois Kruschev não o consultara
sobre o acordo com Washington. O resultado foi o esfriamento das relações entre
Havana e Moscou.
|
Guevara com o dirigente soviético Nikita Kruschev, em Moscou. No ano de 1962, Guevara e Raul Castro fizeram diversas viagens à União Soviética em busca de ajuda militar, obtendo aviões de combate e outras armas. A decisão de enviar também mísseis nucleares causaria uma crise internacional. |
Para Guevara, a atitude da União Soviética mostrava
que as superpotências viam os países subdesenvolvidos como peões em um jogo
pela hegemonia mundial. Dessa forma ele passou a dedicar todos os seus esforços
diplomáticos à tarefa de unir o Terceiro Mundo.
Depois da Crise dos Mísseis, Fidel e Guevara tiveram
que enfrentar a deterioração da economia cubana. Os planos de Guevara e seus
assessores produziram um monte de problemas, agravados pelo bloqueio
norte-americano e pela hostilidade do sistema financeiro internacional – assim
como pela insatisfação dos trabalhadores com as espartanas condições impostas
pelo sistema de Guevara.
|
Foto do Pentágono mostra mísseis nucleares de médio alcance instalados pelos soviéticos em Cuba. |
Sob o comando de Che, a economia não apenas estava
longe das metas fixadas como sofrera severos danos. A mal concebida tentativa
de diversificar a produção agrícola degenerara em falta de alimentos, o que
levou à imposição de racionamentos. A renda de Cuba, derivada da exportação de
colheitas, já pequena, chegou perto do nada. A falta de peças de reposição e de
adequado treinamento técnico colocaram abaixo os planos de industrialização. O
programa de “incentivos morais” causou rápida queda de produtividade e o
aumento do absentismo no trabalho. O único sucesso demonstrável da gestão
Guevara no INRA foram os avanços na alfabetização e assistência médica.
|
O navio de guerra norte-americano Vesole aproxima-se da embarcação soviética Polzunov, ao largo de Cuba, para inspecioná-la, em novembro de 1962. |
Mais tarde, Guevara admitiu alguns de seus erros como
ministro da Indústrias, como o fracasso de seu programa para produzir colheitas
que diminuíssem a dependência cubana com relação ao açúcar. “Nosso primeiro
erro”, escreveu, “foi o modo com que conduzimos nossa diversificação. Em lugar
de embarcar na diversificação gradualmente, tentamos tudo de uma única vez, o
que produziu um declínio geral na produção agrícola. Toda a história econômica
de Cuba tem demonstrado que nenhuma outra atividade agrícola pode dar o mesmo
retorno a essas terras daquele gerado pelo cultivo de cana-de-açúcar”.
Apesar desses transtornos, Guevara insistia que o
objetivo final era “construir o comunismo simultaneamente com sua nova base.
Nós devemos fazer o novo homem”. Não tinha dúvidas de que a sociedade cubana
deveria produzir novos homens e mulheres – com melhor treinamento técnico,
ardente compromisso com a construção da nova sociedade e conhecimento e
habilidade para aumentar a produtividade – antes que Cuba tivesse uma economia
forte.
|
Fila para comprar pão em Havana. O programa econômico de Guevara foi um fracasso, o que levou à imposição de racionamento de alimentos e bens de consumo. No final de 1963, Guevara foi removido de todos os postos importantes que ocupava na equipe econômica do governo. |
A visão de socialismo de Guevara era diferente da
existente na URSS no China. Ele colocava ênfase menos na eficiente
administração da economia e mais no despertar espiritual do moral entre os
cidadãos. “A felicidade do povo é a base de nossa luta”, escreveu. “Isso não é
uma questão de quantos quilos de carne alguém pode comer, ou quantas vezes por
ano ele pode ir à praia, ou que quantidade de ornamentos importados uma pessoa
pode comprar com seu salário. O que realmente importa é que o indivíduo
sinta-se mais completo, com muito mais riqueza interior e muito mais
responsabilidade”.
Da teoria para a prática, as experiências socialistas
de Guevara produziram condições mais duras de trabalho, a redução das
liberdades civis, severos deslocamentos econômicos para um vasto segmento da
sociedade cubana – e, por fim, o fracasso da economia do país como um todo. No
final de 1963, Guevara já não era mais o presidente do Banco Central, e seu
papel no comando da economia tinha sido bastante reduzido. Sua atividade estava
mais ou menos limitada à diplomacia e às relações internacionais.
|
Guevara toma Chimarrão com o presidente uruguaio Eduardo Victor Haedo, em Punta del Este, em 1961. |
Capítulo 6: O embaixador da
revolução
Desde o começo, o simpático e carismático Che Guevara
tinha sido o melhor embaixador da revolução cubana. No verão de 1959, ele fez a
primeira ofensiva diplomática do novo governo visitando Egito, Índia,
Paquistão, Japão e Indonésia em busca de apoio político e econômico. Sua
reputação como diplomata cresceu durante seus cinco anos na direção da economia
cubana, quando viajou por todos os continente negociando acordos comerciais.
Seu desempenho na Conferência Interamericana de Punta del Este, no Uruguai, em
agosto de 1961, demonstrou sua crescente importância na diplomacia
internacional.
O governo Kennedy, pouco antes de lançar a invasão da
baía dos Porcos, tentara cativar a América Latina com um massivo programa de
ajuda, a Aliança para o Progresso. Depois do fracasso da invasão e da
consequente erosão do prestígio e da credibilidade de Washington, tornou-se
imperativo para Kennedy causar boa impressão em Punta del Este, onde estavam
reunidos representantes de todos os países latino-americanos.
A grande notícia de Punta del Este, porém, foi o
discurso de Guevara criticando as motivações do programa de ajuda de Kennedy.
Os EUA estão interessados em manter o status quo na América Latina e não em
produzir reformas reais, sustentou o representante de Cuba. “Os especialistas
norte-americanos jamais falam em reformas agrárias”, disparou Guevara na
conferência. “Eles preferem assuntos seguros como o suprimento d’agua. Em suma,
eles parecem estar preparando a revolução dos sanitários”.
Guevara lembrou o papel dos Estados Unidos na invasão
da baía dos Porcos e exigiu de Washington “a garantia de não-agressão contra
nossas fronteiras”. Ele se queixou dos esforços norte-americanos para isolar
Cuba dos outros países latino-americanos e comentou que o exemplo da revolução
cubana iria naturalmente se espalhar pela América Latina por que “é alguma
coisa espiritual que transcende fronteiras”. Ao mesmo tempo, garantiu que Cuba
não exportaria a revolução enviando armas para outros países, dando a entender
que Havana estava disposta a conversar com o governo norte-americano sobre o
relaxamento das tensões.
|
Guevara (à extrema direita) foi o único entre 21 delegados latino-americanos e dos Estados Unidos a não votar a favor da Aliança para o Progresso. Ele condenou o programa como "um veículo para esterilizar a revolução cubana". |
O representante norte-americano em Punta del Este,
Richard Goodwin, porém, tinha ordens claras para evitar qualquer contato com
Guevara. Ainda assim, alguns delegados latino-americanos deram um jeito de
reunir os dois, que passaram horas discutindo meios de normalizar as relações.
Durante a conferencia, Guevara voou para Buenos Aires, onde foi recebido pelo
presidente Arturo Frondizi. Também foi a Brasília, para ser condecorado pelo
presidente Jânio Quadros, ansioso para demonstrar que o Brasil tinha uma
política externa independente.
Na verdade, Guevara era um assunto quente demais para
qualquer um desses interlocutores. Frondizi foi derrubado por um golpe militar,
Jânio renunciou durante aguda crise política, e o norte-americano Goodwin
recebeu áspera reprimenda do Senado de seu país. Em janeiro de 1962, Cuba foi
expulsa da Conferência Interamericana por ter aderido ao comunismo. Assim, nada
de proveitoso resultou das negociações que, com um pouco de boa vontade,
poderiam ter tornado mais amigáveis as relações entre Havana e outros governos
latino-americanos ou mesmo com o governo dos Estados Unidos.
Depois que os soviéticos removeram os mísseis
nucleares de Cuba sem consultar os cubanos, Guevara já não poupava críticas à
União Soviéticas. Sua proposta de fomentar a revolução em qualquer parte do
mundo chocava-se frontalmente com a ideologia oficial soviética, que, em nome
da “coexistência pacífica” com os Estados Unidos, julgava que a maioria das
revoluções podia esperar algumas gerações.
O homem que havia assinado em 1960 o primeiro acordo
comercial transformando a União Soviética no principal parceiro comercial de
Cuba agora via Moscou quase como um inimigo. Em maio de 1963 e janeiro de 1964,
Fidel foi à capital soviética aparar as arestas, retornando com novos tratados
de ajuda econômica, essenciais para manter em pé as combalidas finanças da
ilha. De volta a Havana, Fidel anunciou que sustentaria a ajuda aos
revolucionários de outros países e pediu que os outros países parassem de intervir
nos negócios internos de Cuba – um discurso que os soviéticos gostaram de
ouvir. Ainda que Havana tenha continuado a ajudar revolucionários estrangeiros,
em seus discursos públicos Fidel manteve a versão moderada inspirada pela União
Soviética, de quem Cuba era agora totalmente dependente.
|
Guevara como chefe da delegação cubana à conferência de Punta del Este, em 1961. A pauta da reunião era o programa de ajuda econômica para a América Latina do presidente Kennedy, a Aliança para o Progresso. |
A economia cubana sofrera um novo choque em julho de
1964, quando catorze países latino-americanos acusaram Cuba de ajudar
movimentos esquerdistas na Venezuela – praticamente todos os países do
hemisfério se recusavam a manter contatos comerciais com o país de Fidel. O
apoio aos movimentos revolucionários latino-americanos, a mais querida crença
de Guevara, custara um preço altíssimo.
Apesar disso, Fidel ainda enviou Guevara a Moscou em
novembro. A viagem foi um fracasso, e Che retornou poucos dias depois, sendo
substituído por um membro do Partido Comunista Cubano, que levou adiante um
novo acordo comercial. Nomeado representante de Cuba na Assembleia Geral das
Nações Unidas, em Nova York, Guevara fez um discurso destinado a aprofundar a
crise. No dia 11 de dezembro de 1964, da tribuna da ONU, deu a entender que a
União Soviética tinha renegado os princípios marxistas, ignorando os países e
movimentos revolucionários do Terceiro Mundo, enquanto dava atenção apenas às
suas relações com os Estados Unidos e os países capitalistas.
“Se nós estamos garantindo a paz mundial, a
coexistência pacífica não pode ser apenas para os poderosos (...) Como
marxistas, nós sustentamos que a coexistência pacífica entre as nações não pode
incluir a coexistência entre exploradores e explorados, entre opressores e
oprimidos”, criticou Guevara. Também exortou as superpotências a desmantelar
seus arsenais nucleares e falou da “obrigação de todos os Estados de
respeitarem as presentes fronteiras de outros Estados e evitar qualquer
agressão, mesmo com armas convencionais”, enquanto mantinha em aberto o direito
da luta armada contra a opressão dentro de qualquer país.
|
Guevara recebe uma delegação chinesa em Cuba, em 1961, um ano depois de seu encontro com o líder chinês Mao Tsé-Tung e do estabelecimento de sólidas relações entre os dois países. |
Guevara não era apenas um homem que atacava
abertamente os Estados Unidos, mas também alguém que criticava a União
Soviética nas entrelinhas. “O regime castrista e o imperialismo ianque estão
envolvidos em uma luta de morte, e nós sabemos que um dos dois precisa morrer”,
tinha dito no começo de 1960, quando ainda era poderoso no governo cubano.
Agora, poucos dias depois de seu discurso na ONU, ele apareceu no programa
“Face the nation”, na rede de televisão norte-americana CBS, para ampliar as
dimensões desse conflito: “os combatentes da liberdade cubanos estão combatendo
a opressão e o imperialismo em cada país da América Latina e fazendo com que a
revolução triunfe através do Terceiro Mundo”.
O discurso na ONU deixou claro que as simpatias de
Guevara na luta contra os Estados Unidos não estavam com os comunistas
ortodoxos e com a União Soviética. Ele preferia apostar no Terceiro Mundo e nos
comunistas dispostos a pegar em armas. Em contraste, Fidel estava bem próximo à
ortodoxia comunista, pelo menos em público. Havia outra divergência entre os
dois: a amarga disputa ideológica entre Moscou e Pequim, que começara em 1960 e
culminara com o rompimento completo em 1963. Guevara apoiava a China, enquanto
Fidel ainda não fizera publicamente sua escolha. Em 1966, ele finalmente se
colocou ao lado da União Soviética e passou a atacar os chineses em seus
discursos.
Fidel estava interessado em expandir relações com o
Terceiro Mundo e, para isso, Guevara era perfeito. No final de 1964, Che viajou
durante meses pela África, conversando com líderes de oito países sobre a
criação de um organismo representativo dos países em desenvolvimento. A
primeira parada foi na Argélia, que poucos anos antes conquistara sua
independência da França depois de sangrenta guerra de guerrilhas. “A África
representa um dos mais importantes, senão o mais importante, campos de batalha
contra todas as formas de exploração existentes no mundo, contra o
imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”, disse aos jornalistas, em Argel.
No Mali, Guevara preocupou-se em pregar a luta armada
na América Latina. Depois, foi ao Congo, Guiné, Gana, Daomé, Tanzânia e, por
fim, ao Egito, onde se encontrou com o presidente Gamal Abdel Nasser, em 18 de
fevereiro de 1965. “Após visitar sete países africanos”, disse Guevara a
Nasser, “estou convicto de que é possível criar uma frente comum de luta contra
o imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”.
A jornada pela África foi brevemente interrompida por
uma viagem à China, que estava assinando um acordo comercial com Cuba. O
relacionamento entre Che e o governo de Pequim era excelente desde sua primeira
viagem ao país, em 1960. Naquela ocasião, Guevara expressara sua admiração pelo
regime chinês, dizendo ao vice-premiê Chu Em-lai: “A grande experiência do povo
chinês em seus 22 anos de luta no interior do país (...) revela novos caminhos
para a América Latina”. A partir daí, os chineses viam em Guevara o seu
principal aliado no governo cubano. Assim, em 1965 ele teve calorosa acolhida
em Pequim.
|
Guevara fuma um charuto enquanto escuta o pronunciamento do embaixador norte-americano no Conselho de Segurança da ONU, Adlai Stevenson, em 1964. |
Ao deixar a China, Che estava pronto para condenar
seu rival, a União Soviética. Em discurso feito na Conferência Afro-Asiática na
Argélia, em 26 de fevereiro de 1965, Guevara fez críticas contundentes ao que
via como a incapacidade da União Soviética em fornecer ajuda adequada aos
movimentos revolucionários. Com uma perspectiva internacional da revolução, ele
disse: “Os países socialistas têm o dever vital de fazer dessas revoltas contra
o sistema imperialista um sucesso”. Não poupou palavras ásperas, desta vez: “Os
países socialistas têm o dever moral de liquidar com sua tácita cumplicidade com
os países exploradores do Ocidente”. Os delegados à Conferência Afro-Asiática
podem ter aplaudido com emoção, mas a União Soviética não estava nada contente
com as exigências extremadas de Guevara.
Um mês mais tarde, no Egito, Guevara voltou à carga,
criticando a política econômica soviética em uma publicação oficial egípcia.
Parece que escolhera a ocasião para romper publicamente com Moscou – e isso
teria seu preço. No dia 4 de março de 1965, quando desembarcou em Havana, Fidel
e outros líderes cubanos estavam lá para recebe-lo, mas a recepção foi gélida.
Fidel estava furioso com as críticas de Guevara à União Soviética, país de quem
Cuba dependia militar e economicamente. Logo depois, Che fez um discurso para
dirigentes juvenis no Ministério da Indústria e, então, desapareceu das vistas
do público por 18 meses.
|
As críticas de Guevara aos soviéticos irritaram Fidel, que não desejava colocar em risco os importantes acordos comerciais firmados com Moscou. Em 1965, Guevara desapareceu das vistas do público. Ele tinha optado por retornar à vida de guerrilheiro. |
O desaparecimento de Guevara era um mistério em Cuba
e em todo o mundo. No passado, ele tinha escrito à sua mãe que passaria um mês
no campo cortando cana e ficaria durante cinco anos dirigindo a economia do
país. Desta vez, porém, nada disso parecia estar acontecendo. Em maio, Ricardo
Rojo bombardeou Havana com telegramas sobre o grave estado de saúde de Célia de
La Senna. Por telefone, falou com Aleida, mulher de Guevara, que se mostrou
confusa sobre o paradeiro do marido. Em 19 de maio, a mãe de Guevara morreu,
sem que o filho desse notícia. Havia especulações variadas: estava morto;
aprisionado por Fidel; fora vítima de um colapso nervoso; tinha uma doença
fatal. Outros rumores indicavam que estava vivo e lutando numa nova revolução
em algum lugar da América Latina, ou África e mesmo no Vietnam – muitos juravam
tê-lo visto no selva, carregando o seu fuzil.
Na verdade, Guevara e Fidel estavam tentando definir
um novo papel para Che dentro da revolução cubana e com relação ao tipo de
revolução mundial que ambos apoiariam. O programa econômico de Guevara estava
morto e enterrado e, através dos anos, ele tinha ofendido muitos líderes
cubanos com sua arrogância e exigências moralistas. Além do mais, não era
cubano de nascimento, e isso era usado contra ele. Por fim, suas críticas à
União Soviética irritaram aqueles dirigentes de Havana que desejavam um
estreito relacionamento com Moscou ou, ao menos, conseguir tanta ajuda quanto
fosse possível.
|
Guevara conversa com o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, durante sua viagem à África em 1965. Nesse período, ele defendeu a criação de organismo capaz de representar os interesses dos países em desenvolvimento. |
A soma disso tudo tornava impossível para Guevara
manter seu papel na revolução cubana, seja como dirigente econômico, ou
diplomata de destaque – fato que ele e Fidel conheciam muito bem. Além do mais,
Guevara tinha desenvolvido verdadeira obsessão pela revolução internacional e
queria comprometer o governo cubano com todo tipo de lutas revolucionárias.
Talvez, estivesse aborrecido como membro da burocracia governamental e
suspirasse pelos heroicos dias da guerra de guerrilha; talvez desejasse provar
pessoalmente a validade de suas teorias bélicas.
De qualquer forma, Guevara voltou à África para lutar
ao lado das forças esquerdistas, em uma guerra na República Democrática do
Congo. É possível que pensasse que movimentos guerrilheiros providenciariam os
meios ideais para colocar em prática suas teorias e, por certo, imaginou que o
Congo poderia acender o estopim da revolução. O governo socialista de
Bem-Bella, da Argélia – o melhor aliado de Cuba no continente africano – tinha
sido derrubado e, dessa perspectiva, o retorno de Guevara poderia ser uma
tentativa de manter viva a revolução na África.
|
Joseph Kasavubu, primeiro presidente da República Democrática do Congo (hoje Zaire). Pouco depois da independência do país. em 1960, começou uma sangrenta guerra civil. Guevara esteva lá, para ajudar as forças esquerdistas. |
Sabendo que estava arriscando a vida, Guevara
escreveu inúmeras cartas para Fidel, para seus pais e para seus filhos. Pediu
ao líder cubano que tornasse pública essa correspondência no momento
apropriado. E, como mais tarde revelado, relembrou o encontro na cidade do
México e as lutas travadas por ambos para pedir formalmente a renúncia de todos
seus postos no governo e, até mesmo, de sua cidadania cubana.
“Outras terras pedem a ajuda de meus modestos
esforços”, escreveu. “Eu posso fazer o que você não pode, por causa de suas
responsabilidades em Cuba. Chegou o momento de nos separarmos. Saiba que falo
isso com uma mistura de alegria e dor. Aqui, eu estou deixando minhas mais
puras esperanças como um construtor e o mais querido entre os que me são
queridos (...) e estou deixando o povo que me aceitou como filho. Lágrimas
partem o meu espírito. Para novos campos de batalha eu devo levar a fé que você
me ensinou, o sentimento de que estou imbuído do mais sagrado dever: lutar
contra o imperialismo, onde ele esteja”.
Não há versão oficial da campanha congolesa de
Guevara, mas parece que, com a ajuda de Fidel, ele viajou em julho de 1965 para
Bazzaville, capital do Congo. Acompanhado por uma tropa de elite de 125
guerrilheiros cubanos, ele foi lutar na República Democrática do Congo – em
1972, o país mudou seu nome para Zaire -, ensanguentado por cinco anos de
guerra civil.
O país tornara-se independente da Bélgica em 1960 e logo
começaram os combates entre as diferentes facções. O primeiro-ministro
esquerdista Patrick Lumumba foi assassinado por um mercenário belga a serviço
do coronel Joseph Mobutu, que estava aliado ao direitista Moise Tshombe. Ambos
controlavam a rica província de Katanga, onde diversas multinacionais
exploravam minérios, e recebiam ajuda da CIA. Tshombe emergira como o principal
líder do país, mas agora enfrentava a oposição de rebeldes esquerdistas,
parcialmente influenciados pela memória de Lumumba. Guevara e os cubanos foram
apoiar esses rebeldes, enquanto os Estados Unidos ajudavam o outro lado.
|
Patrice Lumumbu (à direita) e um aliado, Joseph Okito, preso pelas forças do coronel Joseph Mobutu, em dezembro de 1960. Lumumba, um símbolo da luta pela libertação da África Negra, foi executado pouco mais tarde. |
Poucos meses depois, Guevara percebeu que não havia
esperança de vitória. Ele culpou mais tarde a incompetência dos rebeldes e os
acusou de haver cometido atrocidades. “O elemento humano fracassou”, disse ao
jornalista argentino Ciro Bustos, na Bolívia, dois anos depois. “Não havia
desejo de lutar, os líderes eram corruptos. Numa palavra, não havia nada a
fazer”. Há versões de que Guevara foi chamado de volta por Fidel, que estava
sendo pressionado por soviéticos e chineses, cujos interesses estratégicos na
região estavam em conflito com os objetivos do guerrilheiro. De qualquer forma,
a expedição de Guevara ao Congo permanece envolva em mistério. Em março de 1966,
Guevara estava de volta a Havana. Uma vez mais as forças guerrilheiras tinham
fracassado. Mas se tratava apenas de uma pausa antes de Guevara empreender sua
última e fatal aventura.
|
Apesar do fracasso de sua campanha no Congo, Guevara mantinha o compromisso com uma revolução socialista de dimensões mundiais: "Criar um, dois, muitos vietnans - esta é nossa palavra de ordem", disse Guevara, descrevendo a estratégia de formar focos revolucionários em vários países. |
Capítulo 7: Desastre na
Bolívia
Qual poderia ser o futuro de Guevara em Cuba? Sua
política econômica fracassara e sua diplomacia gerara controvérsias. O
princípio com o qual ele se identificava, a ajuda ativa aos movimentos
guerrilheiros, não conseguiria sucesso nos lugares onde tivera participação
pessoal – Venezuela e Congo. O auxílio aos revolucionários estrangeiros ajudara
a isolar Cuba dos países capitalistas e ameaçava seu isolamento com a União
Soviética. Ainda assim, Fidel estava disposto a bancar uma nova tentativa de
acender o estopim da revolução desta vez na Bolívia.
Muitos observadores garantem que havia profundas
divergências entre os dois comandantes cubanos, e que Fidel enviou Guevara para
a Bolívia como forma de se livrar dele. Apesar de ambos concordarem na questão
do Terceiro Mundo, a ausência de Guevara naquilo que deveria ser o escoamento
de seus esforços diplomáticos – a primeira Conferencia Tricontinental, em
janeiro de 1966 – alimentou a especulação sobre uma rixa entre os dois.
Fruto da viagem de Guevara à África, a primeira
Conferência Tricontinental, reunindo representantes de países em
desenvolvimento da América Latina, Ásia e África, foi realizada em Havana, o
que concedia automaticamente a Fidel e a Cuba a condição de líderes da
organização, que seria o embrião do atual Movimento dos Países Não-alinhados.
Baseada no princípio de que os países do Terceiro Mundo deviam evitar alianças
estreitas tanto com os Estados Unidos quanto a União Soviética, a Conferência
Tricontinental era, em grande parte, produto da ideologia de Che Guevara.
Muitos oradores o elogiaram, fazendo explodir aplausos entre os outros
delegados. O representante da Venezuela, por exemplo, um político da oposição,
disse que “nós estamos seguindo o heroico exemplo do comandante Ernesto Che
Guevara”. Em seu discurso, Fidel também lamentou sua ausência, mas aproveitou
para desmentir rumores de que tinha sido eliminado. Isso serviu apenas para
aumentar a curiosidade sobre o verdadeiro paradeiro de Guevara, que naquele
momento ainda estava em Cuba, planejando secretamente a insurreição na Bolívia.
Em 1972, confrontado com a acusação de que se livrara
de Guevara mandando-o para a Bolívia, Fidel desabafou com o jornalista
americano Herbert Matthews: ninguém sabe o que eu sentia por ele. A seu próprio
pedido, guardei silencia durante seis meses, e isso foi muito difícil. Havia
pessoas que já falavam que eu o tinha matado. No México, quando ele se juntou à
expedição do Granma, foi combinado que, uma vez bem-sucedida a revolução, iria
embora lutar em outras revoluções. Não sei como fui capaz de manter em Cuba por
tanto tempo. Mas eu tinha prometido que poderia partir quando quisesse e que eu
não tentaria trazê-lo de volta”.
|
Guevara na Bolívia no começo de sua última campanha guerrilheira. Ele chegou ao país em novembro de 1966, com dezoito cubanos, e estabeleceu seu quartel-general em Nancahuazú, nas montanhas. Pensava repetir a Fórmula da Revolução Cubana, mas as coisas eram diferentes naquele país sul-americano. |
Dessa perspectiva, pelo menos, a campanha boliviana
de Guevara foi um passo lógico em sua visão da América Latina e da revolução
mundial. Mais tarde, houve alguma especulação de que se tornara uma necessidade
psicológica para Che participar de uma luta real na América Latina. E há muitas
evidencias de que Guevara queria tentar provar, uma vez mais, suas teorias
sobre a guerra de guerrilha e participar daquilo que era a obsessão de sua
vida: a libertação da América Latina. A revolução continental era a primeira,
talvez a mais importante, das preocupações de Guevara. Sua primeira mulher,
Hilda Gadea, afirmou que, no México, Guevara descreveu a luta em Cuba como
“apenas um passo em sua luta latino-americana”. Outros antigos companheiros
contaram a Matthews que, desde o começo, Che planejava participar da revolução
cubana e, depois, procurar outras missões. E que, já no outono de 1964, havia
expressado a Fidel seu desejo de deixar Cuba.
Ao longo dos anos 60 Guevara, o campeão da revolução
no Terceiro Mundo, tinha apoiado quase todos os movimentos guerrilheiros que
buscaram a ajuda de Cuba. Seu ensaio de 1965, “Vietnam e a Luta Mundial por
Liberdade”, é um bom exemplo de seu pensamento. No momento em que o escreveu, o
envolvimento norte-americano no Sudeste Asiático estava em plena escalada e
tomava corpo um movimento internacional contra a intervenção. Usando a
militância antiamericana como ponto de partida, ele discutiu as perspectivas de
revolução na América Latina, África e Ásia. “Na América Latina”, escreveu, “a
luta avança, de armas na mão, na Guatemala, Colômbia, Venezuela e Bolívia, e os
primeiros focos já estão aparecendo no Brasil”.
Guevara ressalta a herança comum da opressão no
continente e a linguagem e os costumes semelhantes como bases para a unidade.
Pergunta que tipo de rebelião seria apropriado para essas condições, e
responde: “A luta nas Américas terá, um dia, dimensões continentais. Será palco
de muitas grandes batalhas em nome da humanidade, em nome de sua libertação. Em
comparação com o cenário desse combate de dimensões continentais, os conflitos
atuais são apenas episódios, mas eles já estão fazendo os mártires que
figurarão na história das Américas, por terem dado sua cota de sangue nesse
estágio final da luta pela completa libertação da humanidade”.
|
Um grupo de camponeses bolivianas. Indígenas que pouco falavam espanhol, os camponeses dos Andes suspeitaram daqueles guerrilheiros barbudos, brancos e bem-educados, preferindo colaborar com as forças do governo a apoiar a rebelião. |
Em uma visão apocalíptica da revolução, Guevara
imaginou a formação de “dois, três, muitos vietnamitas” explodindo por todo o
mundo, provocando a destruição final do imperialismo.
Não há dúvidas de que a revolução mundial era o
principal objetivo de Guevara. Ele e Fidel escolheram a Bolívia porque o país
está no centro da América do Sul, cercado pela Argentina, Chile, Peru, Brasil e
Paraguai. Guevara, muitas vezes, deixou transparecer que sua mais profunda
ambição era conduzir uma revolução em sua Argentina natal, de modo que via a
Bolívia, na fronteira norte do país, como um começo.
Mesmo na extrema esquerda há críticas à decisão de
Fidel e Guevara pela escolha da Bolívia como estopim da revolução continental.
A estratégia de Che era, aparentemente, iniciar a luta de guerrilhas no país e,
uma vez o processo em andamento, organizar novos focos nos países vizinhos. Ele,
e talvez Fidel, acreditava que o sucesso na Bolívia e em outros lugares da
América Latina provocaria a intervenção norte-americana, o que causaria
indignação e alimentaria outras rebeliões no continente.
O presidente da Bolívia era o general René Barrientos,
que fizera parte da junta militar que tomara o poder em 1964. No ano seguinte,
os militares empregaram o exército para esmagar a resistência dos sindicatos de
mineiros e, em 1966, Barrientos foi eleito presidente. Guevara supunha que os
militares e o presidente bolivianos estavam enfraquecidos o suficiente para
serem derrotados e derrubados. E que receberia apoio dos mineiros e
esquerdistas bolivianos, de outras forças revolucionárias latino-americanas e
da grande população indígena. Todas essas suposições se mostraram erradas.
|
Guevara em um acampamento guerrilheiro em setembro de 1967. Durante os três últimos meses da campanha boliviana, o pequeno grupo guerrilheiro esteve em constante fuga, enquanto Guevara sofria severos ataques de asma. Finalmente, em 8 de outubro, os rebeldes foram derrotados e Guevara capturado. |
O planejamento inicial contava com o compromisso de
Fidel de substancial ajuda em pessoal, recursos e dinheiro. Embora os detalhes
do estágio de planejamento não tenham sido oficialmente revelados, parece que
Che pode ter ido à Bolívia realizar levantamentos preliminares durante a
primeira metade de 1966. Voltou, então, para Cuba e dedicou-se a organizar a
expedição, enviando agentes cubanos para comprar uma fazenda que serviria de
base para as primeiras operações guerrilheiras. Outros cubanos começaram a
chegar na segunda metade do ano, e Guevara entrou no país no dia 3 de novembro,
disfarçado de homem de negócios uruguaio, com seu cabelo cortado curto e barba
raspada. Ele saíra de Havana em voo regular da Iberia, empresa aérea espanhola,
fez escala em Madri, e dali seguiu para São Paulo. Prosseguiu de ônibus até
Corumbá, no Mato Grosso, onde cruzou para Puerto Suarez, em território
boliviano, e dali foi até a cidade de Cochabamba.
Há relatos detalhados das atividades de Guevara desde
o momento em que ele chegou à base guerrilheira em Nancahuazú, próxima ao
Camiri, um importante centro de mineração, em 7 de novembro, porque, como de
hábito, manteve um diário de seu cotidiano, mais tarde publicado como “O Diário
Boliviano de Che Guevara”. Seus escritos são suplementados pelas anotações de
outros guerrilheiros cubanos que copiaram os hábitos do comandante.
No dia 7 de novembro, é possível ler no diário: “Um
novo estágio começa hoje”. Guevara tinha chegado à fazenda, nas montanhas da
região central da Bolívia, e começado a treinar seus homens, a recrutar
bolivianos e a negociar com os esquerdistas locais maior apoio. Seu grande
desapontamento foi registrado já no dia 1° de Janeiro de 1967, quando Mario
Monje, líder do Partido Comunista Boliviano, se recusou a apoiar a expedição,
porque Guevara insistia em comandar as operações. Foi um duro golpe para a
pequena força guerrilheira, com sérias necessidades, não apenas de mais
combatentes, suprimentos e armas, mas também de apoio nas cidades.
|
O passaporte falso usado por Guevara para entrar na Bolívia. O documento o identifica como um homem de negócios uruguaio, e a foto o mostra sem barba e com os cabelos cortados curtos |
Guevara foi capaz de arrebanhar a solidariedade de
comunistas dissidentes e outros grupos políticos, mas seu principal apoio
consistia basicamente de uma dúzia de recrutas. Não eram, por certo, forças suficientes
para iniciar uma revolução. Em janeiro, ele continuava estocando suprimentos,
que escondia em cavernas da região, e treinando seus homens. Estes sofriam de
enfermidades variadas e havia muitas querelas e dissidências entre a tropa.
No primeiro dia de fevereiro, ele começou o
treinamento de marcha, que pretendia fazer em 25 dias, mas terminou consumindo
45, pois os guerrilheiros se perdiam com frequência, além de enfrentarem mau
tempo, doenças e uma série de dificuldades decorrentes da inexperiência. O
próprio Guevara sofria um forte ataque de asma. Então, Fidel já anunciara ao
mundo que Guevara estava em “algum lugar na América do Sul” liderando uma
revolução. Regimes direitistas em todo o continente tremerem. No altiplano
boliviano, porém, Che e um pequeno bando de homens lutavam para continuar
vivos.
Em março, tudo se complicou. Dois recrutas bolivianos
desertaram e foram detidos por militares, revelando a existência da base de
treinamento em Nancahuazú. Existe alguma especulação de que Guevara foi traído
por um de seus principais contatos na Bolívia, “Tânia”, que deixou documentos
incriminatórios em um jipe – enquanto transportava suprimentos para os
guerrilheiros -, os quais foram encontrados por militares bolivianos. “Tânia”
era o nome de guerra de Tamara Bunke Bider, uma argentina descendente de
alemães. Guevara conhecia-a há anos e fora seu amante. O escritor Daniel James
e outros autores afirmam que ela era agente da Alemanha Oriental e da União
Soviética, que talvez tenha sabotado a expedição de Guevara. Mas não há nenhuma
prova que corrobore essa visão.
O exército boliviano chegou ao acampamento no dia 17
de março e descobriu um dos diários da guerrilha e algumas fotos de Guevara.
Havia, também, certa quantidade de suprimentos e documentos cuja destruição Che
negligenciara – tudo isso constituía prova conclusiva de que o notório Che
Guevara estava na região, tentando começar outra revolução.
|
Esta foto de Guevara foi divulgada em Cuba em abril de 1966 para desmentir rumores de que o líder revolucionário estava morto. Ironicamente, esta e outras fotos acabaram ajudando o governo boliviano a seguir o rastro de Guevara. |
Dois dias depois, o grupo de Guevara chegou às
vizinhanças do acampamento e emboscou tropas bolivianas em Nancahuazú. Nesse
ponto, Guevara anotou, suas forças avançaram do primeiro para o segundo estágio
da guerra de guerrilha. O primeiro era tornar-se familiar com o terreno e
realizar operações de coleta de suprimentos; o segundo envolvia agressão ativa.
E até sua morte, em outubro, Guevara e seus homens participaram de uma série de
escaramuças com o Exército boliviano e seus assessores norte-americanos.
A campanha de Guevara, porém, já embarcara na canoa
da derrota. Em Sierra Maestra, os rebeldes tinham o apoio dos camponeses,
cubanos como eles. Na Bolívia, entretanto, não foram capazes de recrutar um
único camponês. Eles eram índios que falavam pouco espanhol e viam Guevara com
estranheza. O comandante os tinha idealizado como socialistas incipientes que,
por causa de uma básica, ingênua bondade, iriam naturalmente apoiar a
guerrilha. Na realidade, os camponeses suspeitavam daqueles homens barbudos, a
maioria dos quais eram brancos, estrangeiros, educados, classe média e que
pouco sabiam da situação específica da região.
Muitos camponeses consideravam os homens de Guevara
como intrusos tentando iniciar uma guerra, e não como os “libertadores”, que os
próprios guerrilheiros se imaginavam, então, eles cooperavam com o exército,
informando onde estavam os rebeldes. A irritação de Guevara com a pouca
disposição dos camponeses em ajuda-lo era crescente. Em abril, escreveu em seu
diário que “a base camponesa não está ainda desenvolvida, embora pareça que,
por meio de sistemático terror, nós teremos a neutralidade da maioria deles”.
|
Um oficial boliviano mostra as marcas de bala no peito de Guevara em 10 de outubro de 1967. Ele foi executado dois dias antes de os bolivianos mostrarem seu corpo para um grupo de jornalistas como prova de que o famoso guerrilheiro estava morto. |
Guevara, porém, jamais chegou a usar do terror e,
como fizera em Sierra Maestra, libertava os soldados capturados. Mas também
violou algumas de suas próprias normas para a guerra de guerrilha. Seus homens
estavam supercarregados, o que dificultava a movimentação na montanha. E, com
sua mania de manter um diário e tirar fotografias, acabou revelando a
identidade de muitos simpatizantes: quando os bolivianos pegaram essas fotos e
documentos, prenderam e executaram dezenas de pessoas em todo o país.
Outra razão para o fracasso foi que a ajuda dos
partidos esquerdistas bolivianos jamais se materializou. O PC recusava qualquer
cooperação, e os pequenos partidos de esquerda bem pouco tinham a oferecer. Em
determinado momento, uma violenta disputa trabalhista nas minas de estanho
obrigou a transferência de tropas da região onde estava Guevara e ameaçou a
própria existência do governo Barrientos. Mas, sem apoio dentro do país, Che
não foi capaz de aproveitar a situação. Os mineiros foram abruptamente
reprimidos, o governo superou a crise política, e as tropas retornaram para
caçar Guevara.
Ainda que a guerrilha jamais tenha somado mais de 47
homens, venceu uma série de escaramuças com as tropas bolivianas, o que levou o
governo de La Paz a superestimar o tamanho do exército de Guevara. Em abril, a
tropa do guerrilheiro foi acidentalmente cortada em dois, e o exército
interpretou isso como a existência de duas frentes de guerra. Em maio, 16
assessores militares norte-americanos chegaram para treinar o exército
boliviano em táticas antiguerrilheiras.
|
O jornalista francês Régis Debray (à esquerda) e o socialista argentino Ciro Bustos esperam o veredicto de um tribunal militar boliviano, em novembro de 1967. Acusados de cooperarem com a guerrilha de Guevara, foram sentenciados a trinta anos de prisão. |
Guevara jamais foi capaz de reunir novamente as duas
partes de seu pequeno exército. No dia 31 de agosto, os bolivianos encontraram
e aniquilaram o outro grupo guerrilheiro. Guevara estava, agora, completamente
isolado. Tinha apenas 17 guerrilheiros, seu equipamento de comunicação não
funcionava, impedindo contatos com o mundo fora das montanhas bolivianas. Os
camponeses estavam contra ele, os militares bolivianos tinham encontrado sua
pista e o encurralado em um lugar inóspito e pouco familiar. Tinham até
capturado os suprimentos da guerrilha, incluindo os remédios contra a asma de
Guevara. O fim estava próximo.
As forças de Guevara ainda travaram algumas
escaramuças com as tropas bolivianas, entre setembro e outubro. Na batalha
final, no dia 8 de outubro, os guerrilheiros foram encurralados em um
despenhadeiro, e poucos escaparam. O próprio Guevara foi ferido na perna. Um
soldado chegou a apontar uma arma para mata-lo, mas ele avisou: Não faça isso.
Eu sou Che Guevara. Tenho mais valor para você vivo do que morto”. Feito
prisioneiro, caminhou três quilômetros até a aldeia de La Higuera.
O governo boliviano estava diante de um dilema:
podiam executar Guevara ou leva-lo a julgamento. Colocá-lo no banco dos réus
iria, certamente, expor La Paz a uma campanha internacional por sua libertação.
Isso resolveu o assunto. Na manhã seguinte, o presidente Barrientos enviou uma
mensagem para La Higuera: matem Guevara.
Em 9 de outubro, Guevara foi interrogado por agentes
da CIA e da inteligência boliviana. Então, segundo relato do jornalista José
Alcazar, quando o oficial boliviano destacado para a execução hesitava em puxar
o gatilho, Guevara olhou para ele e disse: “Bem, vai em frente, seu filho da
puta, me mata!”. O soldado disparou diversas vezes. Che Guevara estava morto.
Segundo Rojas, que esteve na Bolívia logo depois para
defender um esquerdista que colaborou com Che, Ciro Busto, em seu julgamento,
tal bravata jamais ocorreu. Ele conta em “Meu Amigo Che”, que Guevara recebera
vários tiros antes da captura. Estava sentado no chão com as costas apoiadas na
parede, respirando debilmente quando o capitão Gary Prado, chefe da companhia
de Rangers que o capturou, disparou uma rajada de metralhadora, de cima para
baixo. O tiro de misericórdia foi dado pelo coronel Andrés Selnich, superior
hierárquico de Prado, com uma pistola de 9 milímetros. A bala atravessou-lhe o
coração e o pulmão.
Poucas horas mais tarde, uma dúzia de repórteres e um
fotógrafo chegaram a La Higuera e foram levados até uma pequena lavandeira onde
o corpo de Guevara fora colocado em exibição. Depois de constatarem que o
lendário comandante guerrilheiro estava realmente morto, voltaram correndo para
La Paz com a notícia.
|
O general René Barrientos liderou o golpe militar em 1964 e governou a Bolívia durante cinco anos. Foi dele a ordem de executar Che Guevara, em 1967. |
O corpo de Guevara foi enterrado em local não
revelado, e suas mãos, separadas do corpo, embaladas em formol e enviadas a
especialistas em impressões digitais na Argentina, para não haver dúvidas de
que o morto era realmente Che. Durante dias, houve um debate internacional
sobre a veracidade da morte do guerrilheiro. Todas as especulações terminaram
no dia 15, quando Fidel Castro anunciou que realmente Guevara tinha sido
capturado e executado na Bolívia.
“Raramente alguém pode dizer de um homem com maior
justiça, com maior acuidade, o que eu digo de Che: aquele homem de
extraordinária virtude revolucionária... ele foi um extraordinário ser humano,
um homem de extraordinária sensibilidade” pranteou Fidel.
|
Um imenso retrato de Guevara domina a parada militar em comemoração do 20º aniversário da revolução, em Havana. Depois de sua morte, Guevara foi absolvido de seus fracassos como administrado proclamado herói nacional. |
Capítulo 8: O legado de Che
Depois de sua morte, Che Guevara foi instantaneamente
transformado em um símbolo do compromisso e do heroísmo revolucionários.
Inscrições de “Che vive” apareceram em muros e camisetas em todo o mundo.
Posters e retratos eram exibidos em todos os continentes. Mesmo os Estados
Unidos, cujo governo Guevara vigorosamente denunciara, estudantes começaram a
imitar seu estilo de vestir, deixando crescer o cabelo e a barba para mostrar
que não concordavam com a política externa da Casa Branca. Poucos líderes
políticos da história tiveram sua imagem tão cultuada e difundida em partes tão
diferentes do mundo.
A oposição de Guevara ao comunismo ortodoxo e sua
genuína preocupação com a pobreza do Terceiro Mundo fizeram dele uma figura
ímpar no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70, não apenas em política, mas
também em filosofia. Foi a época da ascensão da Nova Esquerda nos Estados
Unidos, um grupo político e filosófico de marxistas, socialistas e liberais que
compartilhavam muitas das crenças de Guevara. No Terceiro Mundo, muita gente
que via com desconfiança os comunistas chineses e soviéticos encontrou uma
resposta política em Che Guevara.
Com Guevara como inspiração, esquerdistas e
estudantes organizaram greves e manifestações por todos o Ocidente. Na França,
colocaram contra a parede o governo conservador de Charles De Gaulle. Nos
Estados Unidos, trouxeram para as ruas a insatisfação da população com a guerra
do Vietnam e sepultaram as aspirações de reeleição do presidente Lyndon Johnson.
No México, fizeram as primeiras grandes manifestações em décadas contra o
Partido Institucional Revolucionário, que governa o país há cinquenta anos. E,
quando a União Soviética invadiu a Tchecoslováquia para esmagar uma tentativa
de reformas liberalizantes – uma invasão que Fidel aplaudiu -, retratos de Che
apareceram nas ruas de Praga, e comunistas de toda a Europa Ocidental deixaram
os PCs e formaram agremiações independentes de Moscou. Todos esses eventos
aconteceram em 1968, enquanto a morte de Che ainda estava fresca na memória.
Talvez a mais importante lembrança de Guevara esteja
na consciência do Terceiro Mundo. Nos anos 70, o Movimento dos Não-alinhados se
tornou uma das mais influentes organizações mundiais: pela primeira vez os
países pobres tinham voz ativa e a oportunidade de desempenhar um papel
decisivo em seus próprios desenvolvimentos. Na África, a guerra de guerrilha
eclodiu em quase todos os países nos vinte anos seguintes à morte de Guevara,
algumas vezes entre governos socialistas e revolucionários de direita e
revolucionários de esquerda – mas, no Zaire, o coronel Mobutu ainda mantinha
seu poder em 1988, duas décadas depois de Guevara ter lutado contra ele.
Cuba também continua a sentir o legado de Guevara. Nos
anos 70 e 80, Fidel enviou armas e soldados para apoiar os governos socialistas
de Angola, Etiópia e Iêmen, com maior sucesso do que tivera na Venezuela, Congo
e Bolívia. Por outro lado, Havana normalizou suas relações com a maioria dos
países, exceto os Estados Unidos.
|
Cubanos festejam o 15º aniversário do ataque ao Moncada, em 1953. Fidel dedicou a celebração à memória de Guevara, "um homem de extraordinária virtude revolucionária". |
Na América Central, a Frente Sandinista de Libertação
Nacional – uma coligação revolucionária reunindo variadas tonalidades de
socialistas e liberais bastante parecida com o Movimento 26 de julho original –
travou uma guerra de guerrilha e derrotou uma veterana ditadura apoiada pelos
Estados Unidos. Em represália, a CIA armou um exercício contrarrevolucionário
para repetir uma operação que fracassou na baía dos Porcos, há quase três décadas.
|
Manifestação estudantil na Cidade do México, em 1968. Guevara era visto como um herói e um exemplo por milhares de jovens latino-americanos na década seguinte a sua morte. |
O mundo continua a ser movimentado pelas mesmas
forças que Guevara apoiou ou combateu e, frequentemente, as batalhas são
travadas em seu nome. Tão forte são as paixões provocadas por sua memória, que
ainda hoje a maioria do que é escrito a seu respeito trata-o como um monstro ou
um santo. “Um fanático tão resoluto como Guevara pode ser contagioso, mas
apenas para outros fanáticos”, opina seu biógrafo francês Léo Sauvage. Para outro
francês, Régis Debray, um jornalista que lutou com Guevara na Bolívia, “a
aventura de Che foi um foi uma aventura mística, e seu último mês de vida a
Paixão. Ele traz à mente a imagem de Cristo”. O filósofo Jean-Paul Sartre dizia
que Guevara fora simplesmente “o mais completo homem de nosso tempo”.
|
Um monumento a Guevara erguido por chilenos em 1968. Em 1970, os chilenos elegeram um presidente socialista, Salvador Allende, que três anos depois foi derrubado e morto em sangrento golpe de Estado. |
Para Fidel Castro, que se tornou amigo de Guevara
certa noite na Cidade do México, ele era “um homem de total integridade, um
homem de supremo senso de honra, de absoluta sinceridade – um homem de hábitos
estóicos e espartanos, um homem em cuja conduta nenhuma mácula pode ser
encontrada. Ele constituía, por suas virtudes, o que pode ser chamado de o
verdadeiro modelo revolucionário”.
|
"Viva a Revolução" é a manchete do Granma, o jornal do Partido Comunista Cubano, no 25º aniversário da tomada do poder por Fidel Castro. O papel de Guevara na guerra revolucionária já se tornara lenda, e seu nome um símbolo para os movimentos esquerdistas em todo o mundo. |
Cronologia
1928 – 14 DE JULHO: Nasce Ernesto
Guevara de La Serna, em Rosário, Argentina.
1951/52 – Viaja de
motocicleta pela América Latina; visita os Estado Unidos.
1953 – Forma-se médico pela
Universidade de Buenos Aires.
1954 – Viaja à Bolívia e à
Guatemala.
1955 – Conhece Fidel Castro
no México.
1956 – Participa da
expedição do Granma.
1956/58 – Luta na guerra
revolucionária cubana.
1959 – Janeiro: entra
triunfante em Havana
Junho/setembro: Viaja pela Europa,
Ásia e África como embaixador da revolução cubana.
Outubro: Nomeado diretor das
Indústrias do Instituto Nacional de Reforma Agrária.
1960: Outubro/Dezembro:
Visita a Tchecoslováquia, a União Soviética, a China e a Coreia do Norte.
1961 – Nomeado ministro das
Indústrias.
Agosto: Participa da cúpula
econômica de Punta del Este.
1962/63 – Viaja à União
Soviética, à China e à África.
1965 – Visita a África.
Julho: Participa da guerra civil
no Congo
1966 – Março: Retorna do
Congo para Havana.
Novembro: Desembarca na Bolívia para
iniciar luta de guerrilhas.
1967 – 9 de outubro:
Executado na Bolívia.