sábado, 26 de janeiro de 2019

Os grandes líderes do século XX - Che Guevara



Ernesto Che Guevara vestindo sua característica farda militar
Capítulo 1: O triunfo da Revolução
          No entardecer do dia 2 de janeiro de 1959, Ernesto Che Guevara entrou triunfalmente em Havana, capital de Cuba. Tinha então 30 anos, usava um boné militar sobre os longos cabelos revoltos e ostentava um sorriso maroto no rosto. De pé sobre um jipe, personificava todo o encanto romântico da revolução e arrancou aplausos da multidão que, fascinada, apinhava as ruas da cidade.
         Durante os últimos dois anos, ele lutara, sob o comando de Fidel castro, para derrubar a ditadura brutal de Fulgêncio Batista. A revolução que começara como um foco diminuto de sublevados – com Fidel e Guevara havia cerca de cem combatentes, em 1957 – crescera para se tornar um levante popular, um onda indignada que engoliu o regime de Batista.
            Apenas dois dias antes, Guevara comandara a mais importante vitória militar da guerra. Com algumas dezenas de homens assumira o controle de Santa Clara, uma das maiores cidades do país. Foi a goda d’água. No dia de Ano Novo, Fulgêncio Batista fugiu do país – a revolução vencera.
            A tropa de Guevara, um heterogêneo grupo de homens magros e barbudos, endurecidos pela luta de guerrilha no inóspito interior do país, atravessou Havana para atacar La Cabaña, uma fortaleza construída quase duzentos anos antes num lugar privilegiado, com vista sobre a cidade e o porto. O esperado combate não aconteceu contudo. A guarnição preferiu se render. Quase ao mesmo tempo, noutra parte da cidade, outro importante comandante revolucionário, Camilo Cienfuegos, ocupava o quarte-general das Forças Armadas, no Campo Colúmbia. Os guerrilheiros tomaram o palácio presidencial, postos militares e delegacias de política – tudo sem disparar um só tiro.
         Os habitantes de Havana já haviam testemunhado golpes de Estado e a violência de regimes militares ou civis, todos corruptos. Assim, era natural que esperassem um banho de sangue. Mas não houve violências, exceto ocasionais saques em lojas e casas de personalidades notórias do regime Batista. A moderação e a disciplina das forças guerrilheiras causou admiração na população – o prestígio do comandante Fidel Castro e de seu lugar-tenente, Che Guevara, não cessava de crescer.
           Nascido na Argentina, Guevara tinha 28 anos quando em 1956, aderiu ao grupo revolucionário de Fidel, no México. Foram os cubanos que lhe deram o apelido de “Che”, que ficaria incorporado a seu nome – o termo significa “irmão” em idioma guarani e ingressou como interjeição e vocativo na linguagem cotidiana de argentinos, uruguaios e brasileiros do Sul.
Guevara e outros líderes rebeldes entram em Havana no dia 2 de janeiro de 1959, depois da queda do ditador Fulgêncio Batista
Fidel Castro e Guevara em uma manifestação pública um ano depois do triunfo da revolução. ambos eram os membros mais populares do novo governo cubano
       Uma das principais providências do guerrilheiro depois da vitória foi telegrafar para seus pais, na Argentina, e convidá-los a vir a Cuba conhecer a experiência revolucionária que dali em diante enfrentaria sua fase mais difícil. Depois de tomar o poder, havia que saber o que fazer com ele, e não existia um plano de ação preestabelecido. Mesmo o líder Fidel, um advogado alto e magro de 32 anos, parecia não ter muito claro o caminho a seguir.
          Essa fora sua segunda tentativa de derrubar a ditadura de Batista. Em 26 de julho de 1953, a frente de 130 homens tentou tomar o quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país. O ataque foi um fiasco, muitos rebeldes foram mortos e capturados. Alguns foram assassinados no cárcere, outros levados a julgamento. Preso, dias depois, Fidel fez sua própria defesa no tribunal, uma apaixonada peça de oratória mais tarde publicada sob o título de “A história me absolverá”. Os juízes de Batista, porém, não se deixaram comover e o condenaram a quinze anos de cadeia.
         Dois anos depois foi libertado, quando Batista, tentando amainar as tensões políticas, decretou anistia geral. Fidel partiu em seguida para o México, onde fundou o Movimento 26 de Julho e recomeçou a fazer planos para derrubar Batista. Foi lá que conheceu Guevara.
       Revoluções e guerras civis não eram elementos estranhos a Cuba. Essa grande ilha, localizada a somente 150 quilômetros da costa dos Estados Unidos e, na época, com a maior população do Caribe (6,5 milhões de habitantes), tinha uma história de violência e opressão. Descoberta por Cristóvão Colombo em 1492, ainda era uma colônia espanhola no final do século XIX, quando o restante da América Latina já conquistara sua independência. Revoltas e conspirações contra o poder colonial tinham sufocado ao longo do século, a mais sangrenta delas a partir de 1896, quando começou a Guerra dos Dez Anos, que custou a vida de mais de 200. 000 cubanos e espanhóis. Se não foi capaz de garantir a independência de Cuba, o conflito terminou com a libertação da grande população negra da ilha. Outras reformas prometidas pela Espanha não se materializaram, contudo, e quando em 1895 Madri suspendeu os direitos civis em Cuba, explodiu uma segunda guerra civil.
Em setembro de 1933, Fulgêncio Batista chefiou um golpe militar que o tornou o virtual líder do governo. Ele dominou a vida política do país até ser deposto pela revolução em 1959
        Os líderes da Guerra dos Dez Anos, entre eles o poeta José Martí e o ex-escravo Antonio Maceo, pegaram em armas novamente decididos a combater até a independência total do país. Em fevereiro de 1898, quando os rebeldes estavam próximos da vitória, um navio de guerra norte-americano, o Maine, explodiu no porto de Havana, matando dezenas de marinheiros. Ainda que a causa jamais tenha sido esclarecida, o incidente serviu de pretexto para a intervenção dos EUA. Com a entrada em cena das tropas norte-americanas, os espanhóis foram rapidamente derrotados, e Cuba viu-se livre da Espanha.
           Havia um preço a pagar, porém. No final da guerra, os EUA ocuparam e governaram a ilha por três anos. Em 1902, Washington concedeu independência a Cuba, mas condicionada a um sistema de tutelagem que permitia aos norte-americanos intervirem militarmente no país sempre que julgassem necessário – e, de fato, exerceram este direito diversas vezes, até que o acordo foi revogado em 1934. Durante este período, as terras comunais foram divididas e substituídas por grandes plantações de açúcar, de propriedade de poderosos latifundiários. Mesmo depois de 1934, os EUA continuaram sendo o principal parceiro comercial de Cuba, e os sucessivos e corruptos governos da ilha levavam sempre em conta os interesses econômicos norte-americanos. O último desses governantes foi Batista. Fidel, então, viu-se diante da questão-chave do poder em Cuba: como lidar com os EUA.
         Os três principais líderes da revolução – Fidel, Guevara e Cienfuegos – estavam igualmente envolvidos na dura missão de dar forma ao novo regime. Sob a batuta do guerrilheiro argentino, estavam sendo organizados tribunais revolucionários para julgar pessoas acusadas de crime de guerra contra o povo cubano, mas os planos de governo continuaram indefinidos. Ao que parecia, durante três anos eles tinham se concentrado em vencer a guerra e descuidado do futuro. Agora, os problemas entravam aos turbilhões pela janela e urgia a construção de uma nova ordem econômica e social.
Palácio presidencial em Havana, construído em 1920. Durante os primeiros estágios da guerra revolucionária, em 1957, foi atacado sem sucesso por rebeldes inexperientes. Dois anos depois, as forças de Fidel tomaram a capital sem disparar um só tiro.
         Cuba festejava a vitória rebelde. Fidel Castro começou no leste do país uma espécie de marcha triunfal, viajando 750 quilômetros pela “Carretera Central” até Havana. Multidões o saudavam ao longo da rota, e o comandante parava a todo momento para fazer discursos, alguns dos quais com horas de duração. Afinal, em 8 de janeiro de 1959, entrou triunfalmente na capital com o seu irmão Raúl, Cienfuegos, Guevara e outros líderes revolucionários a seu lado. A cidade explodiu em festa – os sinos das igrejas tocavam, soavam as sirenes das fábricas e dos navios no porto, centenas de milhares de pessoas foram às ruas manifestar seu apoio à revolução.
          A caravana parou no palácio presidencial, onde Castro encontrou o juiz Manuel Urrutia, escolhido para presidir o governo provisório. Muitos políticos estavam voltando do exílio em Miami, e a revolução parecia trazer, enfim, a redenção para uma terra sofrida. Do balcão do palácio, Fidel encantou uma concentração de meio milhão de pessoas com um discurso veemente e entusiástico. Mais tarde, falou no Campo Colúmbia para uma plateia ainda maior. Ele apresentou Guevara e ouros comandantes militares, descreveu os objetivos da revolução, advertiu seus partidários sobre as artimanhas dos inimigos, exortou todos os grupos políticos a deporem as armas e pediu paz e ordem. Alguém soltou duas pombas no meio da multidão, e uma delas foi pousar no ombro de Fidel – não havia simbolismo melhor para as esperanças de paz depois de anos de violência.
Fidel Castro sendo empossado como primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959. À esquerda está Manuel Urrutia, o liberal escolhido para chefiar o governo provisório. Mais tarde, os partidos políticos foram abolidos e Fidel e Guevara governaram sem oposição organizada.
           Cuba estava embarcando naquele momento histórico em uma experiência sem paralelos na história do continente e, nos cinco anos seguintes, Che Guevara desempenharia um papel crucial no novo governo. Depois deixaria Cuba para lutar contra a opressão em outros países do Terceiro Mundo. Morreu antes de completar 40 anos. Ele se tornou o símbolo de um novo tipo de revolucionário, capturou a imaginação do mundo e fixou uma imagem romântica que sobreviveu nas décadas seguintes.
Durante seus anos no governo de Cuba, Guevara insistiu na necessidade de a revolução gerar um "novo homem socialista". Sua política econômica, porém, foi um fracasso

Capítulo 2: Passeio pelas misérias da América Latina
          Ernesto Guevara nasceu em Rosário, Argentina, em 14 de junho de 1928, em uma família de alta classe média, ainda que sem fortuna. Seu pai, o arquiteto e engenheiro civil Ernesto Guevara Lynch, tropeçara em alguns investimentos e fora forçado a vender as terras da família no interior. Um amigo de Che, Ricardo Rojo, escreveu em “Meu amigo Che” que diante do mundo dos negócios, o Guevara pai “foi colocado entre as alternativas: dinheiro ou continuar a ser um cavalheiro, como foram seus ancestrais. Ele escolheu a segunda opção, e este foi o espírito generoso que Che herdou”.
           Guevara Lynch era um militante político. Apoiou a resistência republicana na Guerra Civil Espanhola, nos anos 30, e participou de campanhas para brecar a propaganda nazista nas Américas na Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, pertenceu a diversos comitês e organizações de ajuda aos países democráticos e, mais tarde, fez oposição ao governo de Juan Perón na Argentina e apoiou grupos revolucionários paraguaios. A mãe de Che, Cella de la Serna, era igualmente ativa. Foi presa diversas vezes por sua militância política e, como o marido, apoiou a carreira revolucionária do filho. Durante a juventude de Che, a casa dos Guevara vivia repleta de republicanos espanhóis e outros militantes socialistas ou liberais.
           Quando tinha 2 anos de idade, Che Guevara sentiu os primeiros sintomas da asma que o atormentaria ao longo da vida. Para amenizar os efeitos da doença, a família chegou a se mudar para Alta Gracia, já na Cordilheira dos Andes. À noite, muitas vezes, Guevara Lynch dormia sentado na cama do filho, com a cabeça do menino pousada em seu peito para ajudá-lo a suportar os ataques de asma. Ernesto tinha quatro irmãos e uma amistosa vida familiar. “Nós vivíamos uma boa vida. Eu passava meu tempo com o menino. Ensinei-o a atirar, a nadar e o levei para jogar futebol e rugby. Cuidava para que no verão passasse três horas por dia na piscina, para relaxar seus músculos do peito e permitir que respirasse melhor”, recordou o pai, anos mais tarde.
        Apesar desses cuidados, a asma obrigava Guevara a ficar longos períodos longe da escola, estudando em casa, com os pais. Da mesma forma, ainda que se esforçasse nos esportes e exercícios vigorosos, era uma criança frágil, sujeita aos efeitos da doença crônica. Mas, por certo, adquiriu resistência física e consta que, entre todos os esportes, tornou-se um ciclista razoável.
        Quando Guevara tinha 12 anos, sua família mudou-se para Córdoba, a segunda maior cidade do país, e foi viver próxima a uma favela. O menino brincava sem restrições com as crianças pobres do lugar, um comportamento inusitado para um filho da alta classe média argentina. De acordo com um amigo da família, a casa dos Guevara abrigava cerca de 3. 000 livros, e o adolescente tornou-se particularmente interessado em poesia, ainda que lesse também filosofia, arqueologia, história e uma variedade de outros assuntos. Atraído por viagens, participou de uma excursão que o levou de uma ponta a outra da Argentina – a aventura foi aproveitada para um anúncio da fábrica de bicicleta que utilizou. Nessas viagens costumava comprar montes de livros e manter um diário – ambos os hábitos seriam mantidos quando se tornou um revolucionário de arma na mão.
          No final de 1944, quando Guevara tinha 17 anos, sua família mudou-se para Buenos Aires, capital e centro da vida cultural e política da Argentina. Ele havia decidido estudar medicina, mas continuava atraído por viagens e aventuras. No dia 29 de dezembro de 1949, com seu amigo Alberto Granados, começou uma longa viagem de motocicleta em direção ao Chile. A ideia era rodar todo o continente, conhecendo gente, as condições de vida, a história e a geografia da América Latina. Cruzaram sem problema as Cordilheira dos Andes, mas, próximo da capital chilena, Santiago, a moto de Guevara quebrou, e os dois viajantes foram forçados a pedir carona para a cidade.
         Em Santiago, trabalharam e juntaram dinheiro para prosseguir viagem. Foram visitar as ruínas de Machu Picchu, no Peru. Lá encontraram uma colônia de leprosos – Granados já contava com alguma experiência no trabalho com leprosos -, e Guevara resolveu se tornar um especialista no tratamento da doença, impressionado, em especial, com a camaradagem existente entre os habitantes da colônia. “A mais alta forma de solidariedade humana cresce entre essa solitária e desesperada gente”, escreveu mais tarde. Ele também sairia dessa viagem profundamente marcado pelo contato com a extrema pobreza dos camponeses peruanos, que passavam a vida trabalhando pequenos lotes de terra pertencentes a ricos latifundiários.
Guevara nasceu em 14 de junho de 1928 em Rosário, uma cidade no sudoeste da Argentina. Durante a juventude viajou pela América do Sul e ficou chocado com a miséria e a injustiça social que encontrou.
      Do leprosário foram navegar no rio Amazonas. Sem dinheiro, em Letícia, uma cidade colombiana às margens do grande rio, conseguiram trabalho como técnicos de uma equipe de futebol que venceu o campeonato regional. Em Bogotá, a capital do país, acabaram presos por vadiagem e receberam ordens de abandonar a Colômbia. A expulsão só foi suspensa porque os estudantes amigos emprestaram recursos suficientes para comprar passagens para a Venezuela, onde Granados pretendia trabalhar em outra colônia de leprosos. Guevara prometeu reunir-se a ele mais tarde, mas primeiro pretendia retornar a Buenos Aires e terminar os seus estudos.
       Depois de um rápido passeio por Miami, Guevara voltou à Argentina para prestar os exames finais na faculdade. Nesse meio tempo foi convocado para o serviço militar obrigatório e, ironicamente, considerado inapto por causa da asma. Em março de 1953, com idade de 25 anos, finalmente recebeu seu diploma, mas ainda não estava preparado para se tornar médico. Preferiu viajar para a Bolívia, com outro amigo, onde chegou em julho de 1953, o mesmo mês em que Fidel Castro atacava sem sucesso o quartel de Moncada, em Santiago de Cuba.
         Guevara ainda não tinha nenhum compromisso político, ainda que exibisse fortes simpatias pela causa dos pobres e oprimidos. “Quando comecei meus estudos de medicina, a maioria de meus ideais como revolucionário não existiam. Como a maioria das pessoas, eu estava em busca de sucesso (...) Mas comecei a viajar por toda a América, onde entrei em estreito contato com a pobreza, a fome e a doença (...) Vi a degradação e a repressão. Então comecei a entender que havia outra coisa tão importante quanto ser famoso, que era ajudar essa gente”, relatou mais tarde.
       Em La Paz, capital da Bolívia, Guevara encontrou-se com grupos políticos articulados, especialmente exilados argentinos. Um dos novos amigos, Ricardo Roo, que mais tarde seria seu biógrafo, era um advogado argentino que escapara das prisões do regime de Perón. A Bolívia vivia também momentos de efervescência política. O governo esquerdista estava dando importantes passos para nacionalizar as minas de estanho e para redistribuir terras entre os paupérrimos camponeses índios, objetivos com os quais Guevara concordava inteiramente. Mas quando testemunhou a aplicação prática das medidas – os índios recebiam terras inferiores e eram tratados com menosprezo pelos funcionários públicos – Guevara percebeu que uma reforma agrária aprovada pelo Congresso Nacional ou boas intenções governamentais não eram suficientes para alterar um estado de injustiça crônica.
Em 1944, a família Guevara mudou-se para Buenos Aires, a capital do país. Três anos depois, Che ingressou na faculdade de Medicina e estudou até se tornar um médico, em 1953.
         Seu plano era encontrar com Granados na Venezuela, mas Rojo o convenceu a acompanha-lo até a Guatemala, “onde as coisas estão acontecendo”. Em 1950, os guatemaltecos tinham eleito presidente o coronel Jacobo Arbens Guzmán, um esquerdista moderado que prometera dar sequência ao programa de reformas sociais iniciado no país em 1944, quando fora deposto o último regime militar. Três anos depois, Arbenz estava sob fogo cerrado das elites locais e dos interesses norte-americanos no país, capitaneados pela poderosa United Fruit Company, que explorava o plantio e a exploração de frutas tropicais em diversos países centro-americanos.
        Guevara, Rojo e um grupo de outros argentinos fizeram uma difícil viagem através do Peru e Equador, de onde partiram para o Panamá em um barco da United Fruit – o transporte foi obtido graças à interferência de um proeminente político socialista chileno, Salvador Allende, que vinte anos depois seria presidente de seu país e terminaria assassinado durante um sangrento golpe militar.
        Do Panamá o grupo foi para a Costa Rica, onde vivia um grande comunidade de exilados latino-americanos, incluindo alguns remanescentes do ataque ao quartel de Moncada. Os cubanos garantiam que voltariam a Cuba para derrubar Batista, mas, de acordo com Rojo, nem ele nem Guevara os levaram muito a sério. Em janeiro de 1954, os dois chegaram à Guatemala para mergulhar em um universo político radical. Foi lá que Guevara conheceu a peruana Hilda Gadea Acosta, com quem se casaria mais tarde, e daria importante contribuição a sua formação política. Foi lá também que conheceu Nico Lopez, um dos líderes da revolta de 1953 em Cuba e que, no futuro, apresentaria Guevara a Fidel e Raul Castro no México.
        Neste meio tempo, o presidente Arbens pilotava uma ousada reforma agrária, com o apoio dos comunistas e esquerdistas da Assembleia Nacional. As áreas improdutivas estavam sendo desapropriada e distribuídas entre os camponeses sem terras – a United Fruit, por exemplo, perdeu 91. 000 hectares, colocando Washington em pé de guerra. Com a aprovação do presidente Dwight Eisenhower, a CIA- o serviço secreto norte-americano – armou um pequeno exército de exilados guatemaltecos e mercenários de outros países latino-americanos que, no dia 18 de junho de 1954, invadiu a Guatemala.
          O exército invasor operava a partir de Honduras, sob o comando direto do secretário de Estado, John Foster Dulles, e de seu irmão, Allen Dulles, diretor da CIA, que também tinham garantido o apoio dos próprios militares guatemaltecos. Assim, quando o exército regular aderiu ao golpe, Guevara tentou em vão organizar uma resistência armada. Uma semana mais tarde o presidente Arbenz foi substituído por uma ditadura militar.
        O futuro comandante guerrilheiro ficou chocado com a facilidade com que um governo popular era esmagado. “A última democracia revolucionária da América Latina – a de Jacobo Arbenz – caiu como resultado da fria e premeditada agressão conduzida pelos EUA (...) Isto foi visivelmente encabeçado pelo secretário de Estado (John Foster) Dulles, um homem que, não por coincidência, é também acionista e advogado da United Fruit Company. Quando a invasão norte-americana começou, eu tentei juntar um grupo de jovens como eu para contra-atacar. Na Guatemala era necessário lutar e quase ninguém lutou. Era necessário resistir e quase ninguém resistiu”, escreveu Guevara.
         Hilda Gadea Acosta conta: “Durante a agressão, Che foi guarda voluntário durante o blecaute, nos momentos em que a cidade estava sendo bombardeada. Ele também pediu para ir para o fronte, mas jamais foi enviado”. Ainda que as exortações de resistência feitas por Guevara não tenham produzido nenhum efeito prático, foram suficientes para colocar seu nome na lista negra dos golpistas. Avisado pelo embaixador argentino de que sua vida e a de sua mulher estavam em perigo, Guevara refugiou-se na embaixada.
Guevara com sua mãe, Cella de la Serna, e seu pai, Ernesto Guevara Lynch, em Havana em 1959. A família do líder revolucionário pertencia à alta classe média, mas tinha tradicional militância esquerdista. 
          A derrubada do governo Arbenz convenceu toda uma geração de jovens latino-americanos, em especial Guevara, de que uma revolução verdadeira precisa ser garantida pela força. “Foi a Guatemala que o convenceu da necessidade de luta armada, de tomar a iniciativa contra o imperialismo”, disse Gadea. O próprio Guevara comentou mais tarde: “Quando eu estava na Guatemala de Arbenz, comecei a tomar notas e a pensar sobre quais seriam as responsabilidades de um médico revolucionário. Então, depois da agrassão da United Fruit Company, entendi uma coisa fundamental: para ser um médico revolucionário, você primeiro precisa de uma revolução”.
Jacobo Arbenz Guzmán, um socialista moderado com planos de reforma agrária, foi eleito presidente da Guatemala em 1950. Quatro anos mais tarde, quando Guevara estava no país, Arbenz foi derrubado por um golpe de Estado patrocinado pela CIA.
        Che Guevara estava a caminho de se tornar um revolucionário. Mas primeiro tinha que sair vivo da Guatemala. Recusou uma oferta de salvo-conduto para voltar à Argentina e pediu para ir para o México. Não está claro se já pensava em juntar-se aos cubanos ou se escolheu o México simplesmente porque se tratava de um país mais hospitaleiro para refugiados políticos.
           De qualquer forma, Guevara chegou ao México com um amigo guatemalteco e juntos trabalharam como fotógrafos de rua, ganhando apenas o suficiente para alugar um pequeno e abafado apartamento. Hilda chegou pouco depois e foi morar com eles. Logo, graças às suas conexões políticas, Guevara estava trabalhando na seção de alergia do Hospital Geral da Cidade do México, ao mesmo tempo em que lecionava na Universidade Autônoma do México e ainda conseguia tempo para fotografar para uma agência de notícias latino-americana. Um dia encontrou no hospital o cubano Nico Lopez, que o levou para conhecer um conterrâneo recém-chegado à capital mexicana, Raul Castro.
Faixa colocada em uma plantação da United Fruit Company proclama a oposição do presidente Arbens à intervenção estrangeira, em 1954. Pouco depois, tropas de exilados e mercenários, recrutados pelo governo dos Estados Unidos, invadiram o país e instauraram uma ditadura militar.
        Gadea conta que Che levou Raul para o apartamento do casal e se tornaram instantaneamente amigos, passando a encontrar-se quase todos os dias. Ela descreve Raul como “um dedicado revolucionário”, que era “aberto, seguro de si próprio, muito claro na exposição de suas ideias”. Durante a segunda semana de julho de 1955, Raul apresentou Guevara a seu irmão mais velho, Fidel. Foi amizade à primeira vista. Depois de conversarem toda a noite, ficou acertado que o argentino participaria da expedição 26 de julho, que em breve pretendia iniciar uma revolução em Cuba.
Em julho de 1956, Fidel Castro (assinalado) e Guevara (sentado, o segundo a partir da esquerda) foram presos na Cidade do México com outros vinte exilados cubanos por planejarem a derrubada de Batista. Foram libertados um mês depois e levaram adiante a expedição a Cuba.

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Eu o encontrei (Fidel Castro) em uma dessas noites frias da Cidade do México e lembro que nossa primeira discussão foi sobre política internacional. Algumas horas mais tarde – na madrugada – eu era um dos futuros expedicionários... Depois das minhas experiências de viagem por toda a América Latina e depois da Guatemala, seria preciso muito pouco para me convencer a me juntar a qualquer revolução contra a tirania. Mas Fidel provocou um grande impressão em mim. Ele estava absolutamente certo de que iríamos a Cuba, que chegaríamos lá; que, uma vez lá, nós lutaríamos; e que, tínhamos que agir, lutar, para consolidar nossa posição. Parar de cogitar e começar a luta real. E para provar ao povo cubano que podia confiar em sua palavra, fez seu famoso discurso: ‘Em 1956, nós devemos ser homens livres ou mártires’, anunciando que, antes do fim do ano, ele desembarcaria em algum lugar de Cuba no comando de uma força expedicionária”, escreveu Che Guevara, quando era membro do governo cubano.
 
John Foster Dulles, o secretário de Estado do governo do presidente Dwight Eisenhower, planejou o golpe contra Arbenz

Capítulo 3: Os jovens barbudos de Sierra Maestra
O papel de Guevara na Revolução cubana fez dele um inovador na guerra de guerrilhas. Ele via a guerrilha como um catalisador da revolução armada, começando no campo e espalhando-se pelas cidades.
          Guevara dedicava-se agora todo seu tempo à tarefa de se tornar um revolucionário cubano. Sob a batuta de Alberto Bayo, um veterano de 63 anos da Guerra Civil Espanhola, cerca de oitenta homens começaram um treinamento de combate em uma fazendola a 32 quilômetros da Cidade do México. O ponto alto do treinamento eram as táticas de guerrilha, as operações de ataque e fuga com as quais pequenos grupos fustigam um exército regular nas montanhas ou selvas, tentando desmoralizá-lo. Guevara e os cubanos suportavam marchas de quinze horas através de terrenos difíceis, subindo morros, cruzando rios e abrindo caminho no mato, aprendendo e aperfeiçoando os procedimentos da emboscada e da rápida retirada. O argentino logo se tornou um aprendiz destacado do velho Bayo.
        Mais tarde, o guerrilheiro relembraria esse período inicial de treinamento: “Minha imediata impressão ao ouvir a primeira lição foi a da possibilidade de vitória, da qual eu tiha muitas dúvidas quando me juntei ao comandante rebelde (Castro). Eu estava ligado a ele sobretudo pelos laços da aventurosa e romântica simpatia, e pela convicção de que valia a rena morrer em uma praia estrangeira por puro ideal”. Pelo resto de sua vida, Guevara cultivaria uma idealizada e romântica noção de revolução, assim como do campesinato que ele pretendia libertar.
       A polícia mexicana, alertada pelo serviço secreto cubano, invadiu a fazenda em julho de 1956, prendendo 24 homens, entre eles Fidel, Bayo e Guevara. Eles foram libertados um mês depois, mas, temendo a pressão da polícia mexicana e que alguma outra invasão, entre as muitas planejadas por grupos exilados cubanos, pudesse lançar sombras sobre seu próprio desembarque, pudesse lançar sombras sobre seu próprio desembarque, Fidel fez planos para começar sua revolução em novembro de 1956.
             Depois de um ano de frenética atividade no México e nos Estados Unidos, Fidel levantara fundos suficientes para comprar um barco – o dilapidado iate chamado Granma, vovó em inglês -, armas, munição e suprimentos médicos suficientes para seu pequeno bando de futuros guerrilheiros. Em 25 de novembro de 1956, o granma levantou âncora no porto de Tuxpan iniciando, em segredo, a viagem que mudaria a história de Cuba. Havia 82 homens (28 deles veteranos do ataque a Moncada) apinhados nos 17,5 metros da embarcação. Guevara, o médico da expedição, era um dos quatro não cubanos a bordo. Mal chegaram a mar aberto, a maioria dos viajantes estava prostrada com enjoos. O médico, além de mareado, sofria forte ataque de asma.
            O plano de Fidel era desembarcar no dia 30 de novembro perto da cidade de Niquero, na província de Oriente, a quase 650 quilômetros de Havana. A chegada do Granma deveria coincidir com um levante em Santiago de Cuba, capital da província, comandado pelo líder estudantil Frank País, de 24 anos. A ideia era combinar os rebeldes de Santiago com as forças de Castro, criando um movimento de duas pontas, rural-urbano, o catalisador de uma revolução de dimensões nacionais. As más condições de navegabilidade do Granma, porém, provocaram um atraso de três dias. A insurreição eclodiu no dia combinado e foi esmagada antes que Fidel e seus homens chegassem à praia, em 2 de dezembro.
          A invasão de Fidel converteu-se em um virtual desastre. Depois de sete dias no mar, o exército revolucionário desembarcou, mas não no local designado, perto de Niquero, onde esperavam os suprimentos. Estavam 16 quilômetros ao sul, nos mangues da praia Colorado, perto da vila de Belic. O iate encalhou na areia a centenas de metros da praia e foi logo descoberto por uma lancha da guarda costeira. Os rebeldes precisaram nadar para a costa, perdendo equipamentos preciosos, e vagar no terreno pantanoso, enquanto aviões do governo sobrevoavam o local. Levaram horas para encontrar terra firme.
             “Nós encontramos terra firme, nos perdemos, perambulando como sombras ou fantasmas, marchand em resposta a algum obscuro impulso psíquico”, escreveu Guevara em Reminiscências da Guerra Revolucionária. “Havíamos enfrentado sete dias de constante fome e doença durante a travessia do mar e nos defrontamos com três dias ainda mais terríveis em terra. Exatamente dez dias depois de nossa partida do México, nas primeiras horas da manhã de 5 de dezembro, após uma noite de marcha constantemente interrompida pela fadiga e períodos de descanso, encontramos a área paradoxalmente conhecida como Alegria de Pío.
    
Castro arregimenta camponeses na região do acampamento rebelde em Sierra Maestra. A força guerrilheira original era de 82 homens, logo reduzida a apenas dezessete. No período de um ano, porém, o movimento cresce, com a chegada de recrutas das cidades, e assume o controle das montanhas.
         Enquanto os rebeldes de Fidel se espalhavam para descansar perto dos canaviais de Alegria de Pío, unidades do Exército cubano cercavam a área. Guevara relatou que, como médico da tropa, estava tratando de arranhões e outros pequenos ferimentos decorrentes do desembarque e da marcha tumultuados, quando percebeu os aviões circulando sobre os canaviais e começou a fuzilaria. Um homem perto de Guevara deixou cair seu carregador de munição, e o guerrilheiro argentino foi confrontado com uma séria decisão: “Foi, talvez, a primeira vez em que fiquei diante do dilema de escolher entre minha devoção à medicina e meu dever de soldado revolucionário. Ali, a meus pés, estavam a sacola cheia de medicamentos e uma caixa de munição. Seria impossível carregar as duas, eram demasiadamente pesadas. Eu peguei a munição, abandonei os remédios e comecei a atravessar o descampado, tentando chegar ao canavial”.
            Enquanto seus companheiros caíam feridos ou mortos, Guevara foi atingido no peito e no pescoço. Ainda que os ferimentos tivessem sido superficiais, no momento ele estava certo de que eram fatais e se preparou para morrer de “maneira digna”, ao mesmo tempo em que “tudo ficou obscurecido pelos aviões voando baixo e metralhando o canavial”. “Engrossando a confusão, ocorriam cenas dantescas e grotescas, como a de um camarada de considerável peso tentando se abrigar sob um único pé de cana. No meio do turbilhão, alguém sussurrou: “Silêncio”.
         
Guerrilheiros montam coquetéis molotov às vésperas da ofensiva final de Fidel Castro contra o governo, em 1958. Guevara era então o mais habilidoso comandante da revolução.  
       Pelo menos 25 dos 82 rebeldes morreram na emboscada, entre eles Nico Lopez, o homem que apresentara Guevara a Fidel na cidade do México. Muitos estavam feridos. Aqueles que se encontravam em condições de escapar – como Guevara com a ajuda de companheiros – dispersavam-se em todas as direções. Sobreviventes formavam pequenos grupos, outros foram capturados pela Guarda Rural de Batista nos dias seguintes e assassinados. Não faltaram também desertores. Guevara e um grupo de cinco homens perambularam dias, iludindo as forças do governo e comendo o pouco que encontravam pelo caminho. Afinal, alguns camponeses guiaram os rebeldes para Sierra Maestra, onde encontraram Fidel. Dos 82 homens desembarcados do Granma, havia apenas 17 remanescentes.
        Sierra Maestra, onde os rebeldes planejavam começar sua revolução, era a mais alta cadeia de montanhas de Cuba, um lugar selvagem e escassamente povoado. Em 1956, era praticamente inacessível às forças regulares por causa da falta de caminhos pavimentados. A maioria do terreno era coberto por mato ralo, ainda que houvesse algumas roças de subsistência e umas poucas plantações de café. Na maioria, os habitantes eram camponeses pobres e analfabetos, lavrando pequenas roças, quase sempre como arrendatários. O governo estava representado pela Guarda Rural, cuja principal preocupação era proteger a propriedade dos poucos fazendeiros e que era odiada pelos camponeses. Quando os guerrilheiros de Fidel chegaram à região, eles preferiram manter prudente distância.
         Em meados de janeiro de 1957, Fidel e seu exército. Agora com cerca de 20 homens, decidiram realizar um ataque para mostrar que o movimento 26 de julho estava vivo e ativo. O primeiro alvo foi uma pequena guarnição do Exército, na foz do rio La Plata. Enganando um informante da Guarda Rural de que eram tropas do governo, os rebeldes entraram no destacamento. A primeira vítima, quando a batalha começou, foi o próprio informante. Uma hora depois, tinham tomado o posto, matado dois soldados, aprisionado os demais e capturado algumas armas, sem terem sofrido nenhuma baixa. “O efeito de nossa vitória foi eletrizante, como anúncio luminoso, mostrando que o exército rebelde realmente existia e estava pronto para lutar. Para nós, foi a reafirmação de nossas chances de vitória total”, ponderou Guevara, anos depois.
Batista examina armas capturadas depois do fracassado ataque ao quartel Moncada, em 1953. Três anos depois, Fidel Castro estava de volta ao país, desta vez para liderar uma revolta destinada a ter sucesso.
      Em fevereiro de 1957, dois meses depois de o Granma encalhar na praia Colorado, um repórter do New York Times, Herbert Matthews, foi à Sierra e fez uma longa entrevista com Fidel. Quando a reportagem foi publicada, o movimento ganhou notoriedade internacional, despertou simpatias e, mais importante, legitimidade. O governo Batista foi forçado a reconhecer que havia um exército rebelde em atividade dentro de Cuba.
      Os revolucionários impressionavam os observadores por seguirem um novo código de conduta bélica. Como a maioria dos exércitos, defrontavam-se com espiões e desertores – e, em geral, matavam-nos. Mas tinham como norma libertar todos os soldados governamentais capturados e jamais cometiam atrocidades contra a população local. Era um brutal contraste com o comportamento das tropas regulares, que torturavam e executavam os rebeldes aprisionados, além de, frequentemente, prenderem, torturarem ou assassinarem civis como tática de intimidação. Os rebeldes também conquistaram muitos corações ao assumirem princípios democráticos e bandeiras empunhadas outrora pelo poeta e herói nacional José Martí.
    Ao longo daquele ano, as forças rebeldes cresciam lentamente em combates e confiança. Sobreviveram a emboscadas, ataques aéreos, deserções, traições dos guias camponeses e ao desmoralizante efeito da vida isolada nas montanhas. Reforços chegavam das cidades. À semelhança de Fidel, Guevara e quase todos os homens vindos no Granma eram oriundos da classe média. Mas também camponeses, quase sempre pobres e analfabetos, começavam a aderir à guerrilha, transformando-a em uma força representativa da população em geral, o que lhe dava nova respeitabilidade. Pelo final do ano, as forças de Fidel controlavam Sierra Maestra.
       Guevara, por sua vez, emergira como um dos homens mais importantes do exército rebelde. Além de ser o médico da tropa, tomava parte em combates, algumas vezes comandando unidades. Em 12 de julho de 1957, seis semanas após a vitória na batalha de El Uvero, Castro concedeu a Guevara a patente de comandante, posto que até então apenas ele próprio possuía, e o colocou no comando da Segunda Coluna d Exército rebelde.
       “Era um prazer olhar para nossa tropa. Perto de duzentos homens bem disciplinados, com moral alto e dispondo de boas armas, algumas delas novas. A mudança qualitativa era, agora, evidente na Sierra. Tratava-se de um verdadeiro território libertado: medidas de segurança não eram necessárias, e havia um pouco de liberdade para ficar conversando à noite, enquanto descansávamos em nossas barracas. Foi dada autorização para ir as vilas da Sierra e estabelecer um relacionamento mais íntimo com o povo”, escreveu Guevara.
Esta foto rara mostra o Alto Comando rebelde em Sierra Maestra, em 1957. Guevara (o segundo a partir da esquerda) era o médico da tropa, mas foi promovido a comandante por Fidel (no centro). 
          Depois de quase um ano na Sierra, os rebeldes tinham conquistado o apoio dos camponeses. Em toda parte na ilha surgiram protestos contra o governo, alguns ligados aos rebeldes, mas muitos totalmente independentes e espontâneos. Em março, estudantes lançaram um fracassado ataque contra o palácio presidencial em Havana. Em Santiago de Cuba, onde os combates eram frequentes e violentos, Frank País foi assassinado. Em setembro, um motim naval, reforçado por combatentes do Movimento 26 de julho, espocou em Cienfuegos. Em outubro, um governo provisório foi formado em Miami por proeminentes exilados cubanos. Sentindo que o poder lhe escapava, Batista reagiu com crescente brutalidade.
         Em março de 1958 as atrocidades cometidas pelas forças do governo levaram os EUA a suspender a venda de armas a Cuba, criando um problema adicional para o grande, mas mal equipado e pobremente adestrado e liderado exército de Batista. As forças de Fidel, agora em torno de trezentos combatentes, estavam bem entrincheiradas. Ele e Guevara tinha criado fábricas de munição, escolas, clínicas, cozinhas coletivas, oficinas de trabalho, um jornal e uma estação de rádio na região. Terra havia sido dada aos camponeses, que agora se sentiam livres das arbitrariedades da Guarda Rural.
        Em suas reflexões sobre a vitória final do exército rebelde, Guevara escreveu: “A ditadura criara o necessário fermento, com sua política de opressão das massas e manutenção de um regime de privilégios. Privilégios para os servos do regime, para os latifundiários parasitas e comerciantes; privilégios para os monopólios estrangeiros. Uma vez que o conflito começou, as medidas repressivas do governo e sua brutalidade, em lugar de diminuírem a resistência popular, fortaleceram-na. A desmoralização e a falta de vergonha da casta militar facilitaram a tarefa. A rudeza das montanhas em Oriente mais ineptas táticas do inimigo também fizeram sua parte. A guerra, contudo, foi vencida pelo povo, por meio da ação de sua vanguarda armada, o exército rebelde, cujas armas básicas eram seu moral e disciplina”.
          Guevara descreve o primeiro ano da guerra revolucionária como a “fase nômade”, caracterizada pela constante mobilidade dos rebeldes. Quando Sierra Maestra estava firmemente em suas mãos, começou um novo estágio. Em abril de 1958, as forças anti-Batista nas planícies e cidades convocaram uma greve geral, imaginando que ela fosse capaz de colocar o ditador a correr. No entanto, o movimento fracassou. Em maio, o governo subiu às montanhas com 10. 000 homens, apoiados por tanques e aviões. A ofensiva durou quase dois meses, mas o exército de Batista, desorganizado e conduzido por oficiais ineptos, estava fora de seu território nas montanhas. Incapaz de localizar os rebeldes, limitou-se a bombardear vilas e fazendas, matando dezenas e civis.
          Em agosto, o exército regular estava em franca retirada. Fidel já planejava sua própria ofensiva final para tomar o controle das grandes cidades. “A guerra de guerrilha deixou de existir”, anunciou. “Isto, agora, tornou-se uma guerra de posições e movimentos”. O comandante rebelde pretendia descer das montanhas e enfrentar o exército de Batista em campo aberto. Fidel e Raul Castro marcharam com duzentos homens para Santiago de Cuba, onde receberiam o reforço de outros seiscentos guerrilheiros para tentar ocupar a cidade. Enquanto isso, Che Guevara, com 148 homens, atravessava a província de La Villas, em direção às montanhas Escambray e à cidade de Santa Clara. Camilo Cienfuegos comandava uma coluna de 82 homens, movendo-se paralelamente às forças de Guevara. O alvo deles era Havana.
         Guevara e Cienfuegos começaram a marcha com caminhões recém-capturados, mas um ataque aéreo destruiu a frota já no primeiro dia. Viajando a pé e apenas durante a noite, para evitar emboscadas, as duas colunas ficavam, frequentemente, dias sem comer. Depois de uma marcha extremamente difícil de sete semanas, chegaram a Las Villas, no centro da ilha, onde se reuniram a grupos de estudantes, outras unidades guerrilheiras do Movimento 26 de julho e militantes comunistas.
Soldados do Exército cubano preparam um ataque às forças guerrilheiras. Apesar das denúncias de atrocidades cometidas pelos homens de Batista, os Estados Unidos continuaram armando seu exército até quase a queda do ditador. 
      Dirigentes locais de 26 de julho criaram objeções à presença dos comunistas. “Finalmente”, de acordo com o historiador britânico Hugh Thomas, “no decorrer de acalorada discussão, Guevara disse que havia um abismo político entre ele e o Movimento 26 de julho e que, se naquele momento estavam unidos na luta contra Batista, cedo ou tarde trilhariam caminhos separados”.
          Batista havia convocado eleições para novembro, pretendendo colocar um presidente fantoche, enquanto mantinha o poder real. Fidel advertiu que qualquer um que votasse naquelas eleições poderia ser condenado a trinta anos de prisão ou à morte. Em Las Villas, a presença de Guevara e Cienfuegos foi suficiente para manter os eleitores longe das urnas e, em toda a ilha, menos de 30 % dos cubanos votaram.
         Em dezembro, Guevara recebeu a missão de cortar em duas ilhas, tomando toda a província de Las Villas. Em questão de dias, ele conquistou uma série de brilhantes vitórias táticas, que lhe garantiu o controle de toda a província, exceto sua capital, Santa Clara. Defendida por mais de 2. 000 soldados, a cidade contava com apoio aéreo e um trem blindado. Guevara tinha só duzentos homens. Os arredores de Santa Clara caíram rapidamente, com as tropas governamentais evitando o combate. O controle do centro, porém, custou três dias de combates, casa por casa, até que o exército regular se rendeu. Com a queda de Santa Clara, não havia nada entre os rebeldes e Havana.
Camilo Cienfuegos, um dos líderes originais do Movimento 26 de julho, conduz sua unidade de cavalaria durante as celebrações da vitória em Havana. Ele morreu em um acidente suspeito pouco depois. 
       Santiago de Cuba continuava cercada pelas forças de Fidel e Raul Castro, e o comandante militar da cidade telefonou para Batista, avisando que não poderia manter a cidade por muito tempo. A esmagadora vitória de Guevara em Santa Clara, completada no dia 31 de dezembro de 1958, somada à iminente entrada de Fidel em Santiago de Cuba, soava como o sino da morte para o regime de Batista. Seu exército estava em desintegração e nada mais havia a fazer. Às três horas da madrugada de 1° de janeiro, o ditador embarcou em um avião no aeroporto de Havana e voou para a República Dominicana. Prudente, já transferira para o exterior uma fortuna estimada em 800 milhões de dólares, amealhada em anos de saque do tesouro nacional.
Guevara presidindo um dos tribunais revolucionários que julgaram centenas de pessoas acusadas de crime de guerra. Pelo menos duzentos réus foram considerados culpados de assassinato e tortura, e executado.
           Quando a fuga de Batista foi anunciada pelas rádios cubanas, Fidel convocou uma greve geral para o dia seguinte, para resistir a qualquer tentativa de golpe de Estado. Como pretendia tomar Santiago de Cuba, ordenou a Guevara e Cienfuegos que marchassem para Havana. O comandante da revolução entrou em Santiago no dia 2 de janeiro e, pouco depois, Guevara e Cienfuegos percorriam Havana para assumir o controle das instalações militares e prevenir qualquer reação do Exército. A guerra tinha terminado, e Fidel pôde começar sua lendária marcha triunfal de uma ponta a outra de Cuba, fazendo discursos e entusiasmando a multidão. Contra todas as dificuldades, Fidel, Guevara e o exército rebelde tinham vencido a fase militar da revolução cubana. Agora, os revolucionários tinham pela frente o igualmente espinhoso problema de criar uma nova sociedade.



Capítulo 3: Em busca de um “Novo Homem”
                A guerra revolucionária cubana fora relativamente um conflito em pequena escala, mas, ainda assim, sangrenta. Segundo números publicados dez dias depois da fuga de Batista, novecentas pessoas haviam morrido em combate, cerca da metade delas rebeldes, simpatizantes ou civis. Em compensação, as forças governamentais tinham matado centenas de camponeses no interior, elevando o número de vítimas para cerca de 2. 000, um número respeitável em um país de 6,5 milhões de habitantes.
                No dia seguinte à vitória, Fidel e Guevara estavam extremamente preocupados com a possibilidade de o poder militar remanescente tentar um golpe de Estado. Isso já acontecera em outras ocasiões na América Latina, e Guevara ainda tinha bem viva na memória a derrubada do presidente Arbens, da Guatemala. Para impedir qualquer aventura, Fidel colocou seus homens no controle das principais instalações militares, disposto a substituir o exército regular pelo exército rebelde o mais rápido possível. Também decidiu impor a pena de morte para os soldados de Batista acusados de crime de guerra. Tribunais revolucionários começaram imediatamente a realizar julgamentos, e Guevara, que fizera centenas de prisões quando entrou em Havana, assumiu a responsabilidade pelos processos na capital. Raul Castro ficou com os tribunais em Santiago de Cuba – existe a versão de que as tropas de Raul fuzilaram dezenas de prisioneiros quando entraram na cidade.
                Fidel exortou o povo cubano a não ceder à violência das turbas ou à vingança pessoal, como tinham feito em 1933. Naquele ano, depois da queda da ditadura Machado, centenas de machadistas foram assassinados por multidões ensandecidas. Os cubanos atenderam ao apelo de Fidel, embora os ânimos estivessem exaltados com os relatos de torturas e atrocidades cometidas pelos homens de Batista. A verdade é que, nos dez dias que se seguiram à derrubada do ditador, cem colaboradores do antigo regime, quase todos militares e policiais, foram condenados em processos sumários, e executados.
                No dia 10 de janeiro, porém, tribunais revolucionários foram formalmente criados. Nem por isso os julgamentos deixaram de ser rápidos, durando apenas alguns dias. Presidido por oficiais rebeldes, permitia-se ao acusado defender seu caso. Alguns confessaram, outros foram condenados à prisão, uns poucos foram libertados. Contudo, os considerados culpados de assassinato ou tortura – cerca de duzentos – foram executados.
                Em um caso famosos, por exemplo, o major Jesús Sosa Blanco, que Herbert Matthews descreve como “um dos piores torturadores e matadores do regime Batista”, foi julgado em um espetáculo público realizado em um estádio de Havana e transmitido pela televisão. Enquanto testemunhas relatavam os crimes de Sosa, milhares de espectadores gritavam “assassino”. Sosa reclamou à Corte que o julgamento parecia “um circo romano”. Ele foi considerado culpado e executado. Matthews, que estava em Cuba naquele momento, escreve: “Nem antes nem depois, ouvi ou li a respeito de um inocente condenado”. Mas outros observadores, incluindo o secretário de Estado dos EUA, Foster Dulles, e muitos repórteres de jornais europeus e norte-americanos denunciaram os tribunais revolucionários como sendo uma encenação de justiça.
O major Jesús Sosa Blanco(de perfil), um comandante militar de Batista, em seu julgamento em 1959 ouve o testemunho de uma mulher que o acusa de haver matado seu filho durante a guerra. Apesar das pressões internacionais por sua libertação, Sosa foi considerado culpado e executado.
            Os tribunais e as execuções logo terminaram, e Fidel baniu a pena de morte da legislação cubana, ainda que ela tenha sido restabelecida dois anos depois, quando o país foi invadido por contrarrevolucionários. O governo de Cuba, de fato, estava começando. O presidente Manuel Urrutia formara seu próprio gabinete, incluindo apenas dois revolucionários.
                Fidel assumiu o cargo de primeiro-ministro, e Guevara e outros revolucionários permaneceram formalmente longe das decisões, apesar de, na realidade, ser eles quem detinham o poder, apesar de, na realidade, ser eles quem tinham o poder. Fidel aparecia na televisão todas as noites, para explicar ao povo trabalhador da revolução, a ponto de ser identificado, aos olhos da população, com o processo revolucionário em si. Ele, Guevara e outros líderes rebeldes bem articulados também faziam frequente discursos e aparições públicas, expondo metas e estratégias da revolução.
                Talvez o mais significativo discurso tenha sido pronunciado por Guevara, quando, em 27 de janeiro de 1959, falou sobre “Os Ideais Socialistas do Exército Rebelde”. Começou explicando que a experiência dos rebeldes com os camponeses em Sierra Maestra produzira o conceito de reforma agrária, que descreveu como “o primeiro grande tema social” da revolução, acrescentando que “a justiça social que distribuição das terras produz”. Guevara também falou da necessidade de diversificar a agricultura cubana, de modo a diminuir a dependência do açúcar como principal produto de exportação, e da urgência do desenvolvimento industrial, para reduzir a dependência da importação de produtos manufaturados.
Oficiais revolucionários ouvem depoimentos em um tribunal, em janeiro de 1959. Os julgamentos eram feitos, em geral, por dois ou três guerrilheiros, um assessor jurídico e um cidadão local.
           Tal industrialização, argumentou, exigiria uma frota mercante, eletricidade e modernas estradas e sistemas de comunicação. Já que os empreendimentos privados nesses setores-chave eram inadequados ou inexistentes, eles teriam de ser nacionalizados. Para todos os efeitos, Guevara estava pedindo o socialismo. Dois outros pontos do discurso do comandante revolucionário foram de crucial importância para a revolução da sociedade cubana. Ele pediu a criação de um novo exército popular. “Todo o povo cubano”, sugeriu, “deve tornar-se um exército guerrilheiro (...) Todos os cubanos precisam aprender a manejar e, se necessário, usar armas de fogo em defesa da nação”.
                Um fantasma assustava Fidel e Guevara: os Estados Unidos. Sabiam que Washington não tolerava governos que ameaçassem os interesses norte-americanos, sobretudo os socialistas. Sabiam, também, que os EUA não veriam com bons olhos um regime socialista a apenas 150 quilômetros de sua costa e que seriam capazes de patrocinar um golpe direitista ou enviar suas próprias tropas.
                Naquele discurso famoso, Guevara alinhavou, ainda, sua visão da revolução cubana como o início de um processo revolucionário através da América Latina. A revolução cubana, ele disse, “não está limitada à nação cubana, porque ela está tocando a consciência da América Latina (...) está colocando os ditadores da América Latina no corredor da morte, porque eles, como os monopólios estrangeiros, são os inimigos do governo popular”.

Guevara toma posse como presidente do Banco Central, em novembro de 1959. Ele imediatamente converteu o dinheiro cubano em alvo da curiosidade internacional por assinar as notas com seu apelido "Che".
                As linhas mestras do desenvolvimento político e econômico de Cuba pelos cinco anos seguintes foram fixados naquele momento. Menos de duas semanas mais tarde, Fidel anunciou que seu governo tinha decidido conceder cidadania cubana a Che Guevara por seus serviços prestados à revolução e como um passo legal para capacitá-lo a ocupar postos ministeriais.
                Agora, Guevara já estava claramente identificado como socialista, coisa que Fidel ainda não tinha feito. Ao longo da guerra revolucionária, ele negara ser socialista ou comunista, e mesmo os seus críticos concordavam que estava sendo sincero. Em 16 de janeiro de 1959, duas semanas depois da vitória rebelde, ele viajou pelos Estados Unidos e negou diversas vezes qualquer simpatia pelo comunismo. O Partido Comunista de Cuba, na verdade, só pegara o trem da revolução dois meses antes da vitória – até então costumava chamar Fidel de aventureiro.
                Em contraste, Guevara já exibira ideias marxistas antes do discurso do dia 27. Embora jamais tenha sido membro de um partido comunista e tivesse sérias divergências com as táticas ortodoxas dos PCs latino-americanos, já era um homem versado em Marx e Lênin quando chegou a Sierra Maestra. Para todos os efeitos, parecia que não seria Fidel, mas Guevara, seu mais íntimo colaborador, que conduziria Cuba para um política esquerdista.
No dia 10 de julho de 1960, Guevara discursava para 100. 000 trabalhadores reunidos diante do palácio presidencial para denunciar a "agressão econômica" norte-americana. Três dias antes, o presidente Eisenhower tinha cortado as compras de açúcar cubano, a principal fonte de divisas do país.
              Na primavera de 1959, Guevara, enfermo e exausto, foi confinado por ordem médica em sua casa em um subúrbio de Havana. Ali, ele foi o anfitrião de uma série de encontros secretos, a que compareceram Fidel e Raul Castro, além de outros membros-chave de hierarquia revolucionária. A portas fechadas, foram feitos os planos para afastar os políticos moderados do governo e para socializar a economia cubana. Eles concordaram que a reestruturação da agricultura deveria ter prioridade, e Guevara foi encarregado de colocar no papel as novas leis agrárias.
                A Lei da Reforma Agrária, redigida por Guevara, foi promulgada em 17 de maio de 1959, limitando o tamanho das propriedades rurais a quatrocentos hectares, ainda que uns poucos empreendimentos realmente produtivos pudessem ter até 1. 350 hectares. Qualquer porção além desses limites seria expropriada pelo governo e entregue aos camponeses em parcelas de 27 hectares ou reunidas em fazendas coletivas administradas pelo Estado. Também ficou estabelecido que estrangeiros não poderiam mais possuir plantações de açúcar. Para administrar a lei, uma nova agencia governamental foi criada: O Instituto Nacional de Reforma Agrária, INRA.
                O governo prometeu indenizar os proprietários expropriados, mas, ainda hoje, não está claro se realmente pensava em honrar tal compromisso. O assunto era quente também em Washington, pois as corporações norte-americanas acabavam de perder 200. 000 hectares de solo cubano. A comunidade financeira em Wall Street reagiu com acidez à nova legislação, fazendo coro às famílias ricas de Havana. Em discursos nos dias 21 e 22 de maio, Fidel reafirmou que, apesar do caráter socializante da reforma agrária, ele ainda se opunha ao comunismo. No dia 30 de junho, o novo chefe da Força Aérea, Pedro Días Lanz, convocou uma entrevista coletiva para advertir que Cuba poderia cair nas mãos de uma ditadura comunista. Fidel atacou violentamente Díaz, que renunciou e fugiu para os Estados Unidos.
                Duas semanas mais tarde, o presidente Urrutia pronunciou discurso atacando o PC cubano e convidou Fidel a seguir-lhe o exemplo, mas ouviu uma sonora recusa. “Não considero inteiramente honrado que, para não sermos chamados de comunistas, nós precisemos embarcar em campanhas contra eles ou ataca-los”, justificou Fidel. No dia 17 de julho, ele renunciou ao cargo de primeiro-ministro, chocando o país. Naquela noite, fez um longo discurso pela televisão, denunciando Urrutia. Uma enorme multidão reuniu-se diante do palácio presidencial exigindo a renúncia do presidente, mesmo antes de Fidel terminar seu pronunciamento. No dia seguinte, Urrutia renunciou. Dez dias depois, Fidel, já pronto para abraçar o comunismo, reassumiu seu cargo – o povo cubano respondeu com selvagem entusiasmo.
                O INRA logo se converteu no mais importante organismo do país, com Fidel como presidente. Guevara fora nomeado ministro da Indústria, o que, na prática, o tornava o encarregado da industrialização de Cuba. Ambos estavam usando o INRA para garantir o virtual controle da vida econômica e política da nação. O INRA já possuía sua própria milícia, 100. 000 pessoas empregadas inicialmente para ajudar o governo a controlar a expropriação e distribuição de terras, mas logo treinada como um exército regular. O organismo também financiava a construção de estradas, construía residências rurais e até balneários turísticos, que Guevara considerava instrumentos de seu plano de industrialização.
Guevara visita pela primeira vez a União Soviética, em novembro de 1960. Como resultado da visita, Moscou concordou em fornecer ajuda econômica e substituir os Estados como principal parceiro comercial de Cuba.
            Cuba estava, agora, percorrendo com rapidez o caminho do socialismo. “Há uma grande diferença entre desenvolvimento de livre iniciativa e o desenvolvimento revolucionário”, explicava Guevara. “Em um deles, a riqueza é concentrada nas mãos de poucos afortunados, os amigos do governo, os vendedores mais espertos. No outro, a riqueza é patrimônio do povo”. Os programas governamentais eram populares entre os cubanos, já que significavam aluguéis mais baratos, telefones e eletricidade a preços menores e propiciavam um certo sentimento de orgulho, pois o povo estava assumindo o controle de sua vida econômica e política, livre da dominação estrangeira.
                Em novembro de 1959, Guevara foi nomeado presidente do Banco Central, que reforçou seu controle sobre a economia. De imediato, ele fez a fama da moeda cubana, ao assinar as notas com um simples “Che”. Um de seus primeiros compromissos foi negociar um tratado de venda de açúcar com a União Soviética, em fevereiro de 1960. Moscou aceitou comprar 1 milhão de toneladas de açúcar anualmente até 1965, por um preço fixo. Os países do Leste europeu também concordaram em comprar açúcar cubano. Em julho, ele fechou um acordo similar cm a República Popular d China. Todos esses acordos tornavam inócuas as ameaças norte-americanas de suspender as compras do produto cubano.
                Em casa, Guevara apressava-se em terminar o planejamento da economia, trabalhando frequentemente até a madrugada. Ele ajudou a criar o órgão de planejamento central, que, controlaria o cotidiano da economia e tornou-se um de seus cinco dirigentes. Ao mesmo tempo, participou da elaboração do plano de nacionalizações que transferiu para o Estado toda a indústria de base pertencente a corporações estrangeiras.
                Como seu biógrafo Daniel James conclui, “Che estava agora no auge de seu poder. Como ministro da Indústria, ele era o virtual czar da economia cubana, com todo o peso político que isso significava (...) Che tinha, também, despontado como um teórico, o campeão da revolução latino-americana dos países subdesenvolvidos da África e Ásia, um poderoso aliado do ‘campo socialista’ e um intransigente combate contra o ‘imperialismo ianque’. Ele tinha emergido, em suma, como um estadista revolucionário de estrutura mundial”.
                No final de 1960, Guevara usou sua autoridade para tocar adiante a diversificação agrícola e industrial que propusera em seu discurso no ano anterior. Ao mesmo tempo, em outro projeto disparado por Fidel e Guevara, o governo cubano investiu em campanhas de saúde e educação. O ano de 1961 foi proclamado o “da Educação”. Centenas de estudantes e professores foram enviados para o campo com a missão de alfabetizar os camponeses. A campanha foi um sucesso. Antes de 1959, a taxa de analfabetismo oscilava entre 24 e 30%, e faltavam escolas e professores. No final da campanha, mais de 700. 000 adultos tinha aprendido a ler e escrever, baixando para 3,9% a taxa de analfabetismo. Novas escolas foram construídas por todo o país, novos professores foram contratados.
Soldado cubano observar a base militar norte-americana de  Guantánamo, na costa sul de Cuba. No começo de 1961, já com a inva~soa da ilha em preparação. os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Havana. Guantánamo ainda está em mãos dos norte-americanos, apesar das objeções do governo cubano.
            Com tais programas seguindo em frente, Fidel aparecia regularmente na televisão para explicar o que o governo estava fazendo e por que. Guevara também fazia discursos na televisão com frequência. Em abril de 1960, ele inaugurou a série A Universidade do Povo, explicando a reorganização da economia do país. Uma economia baseada no planejamento central, argumentou, exige o controle do Estado sobre os meios de produção. Este era, disse, “o conceito socialista de economia”. A nova economia deveria significar o fim dos monopólios privados, os quais, em Cuba, “tinham laços muito estreitos com os EUA”, disse Guevara. “Em outras palavras, nossa guerra econômica será com o grande poder do Norte”.
                Depois de detalhar as dificuldades de reorganizar a economia, Guevara disse que “o fundamental é que esse trabalho seria impossível sem duas coisas: a determinação do país em fazê-lo e a ajuda dos países socialistas”. Ele insistiu na necessidade de mudar a consciência individual e os valores, de modo a produzir melhores cidadãos e trabalhadores. A revolução, em suma, geraria o “novo homem”, um ser desprovido do egoísmo e da mesquinhez características da sociedade capitalista. Como o biógrafo John Gerassi escreveu, “a principal preocupação de Che era criar Homem Socialista em Cuba (...) Che sentiu que a economia socialista por si só não valia o esforço, o sacrifício e os riscos da guerra e da destruição se os fins encorajassem as ambições individuais às custas do espírito coletivo”.
                Com tal visão, Guevara exortou os cubanos a trabalharem duro, a mergulharem fundo na revolução e a desenvolverem uma nova escala de valores, que colocasse o interesse da sociedade cubana como um todo acima das preocupações individuais. Para estimular a produtividade, ele propôs “incentivos morais”, a fim de premiar os indivíduos que se sobressaíssem no trabalho e em consciência social.
                Seus críticos, contudo, acusam o sistema econômico de Guevara de ser idealístico só na superfície, pois, na realidade, se trataria de um sistema destinado a manter estreito controle sobre os trabalhadores. Cada trabalhador precisava cumprir uma determinada cota de produção. E os “incentivos morais” eram usados em substituição aos aumentos de salário, abolidos por Guevara. Assim, caso excedesse sua cota, o trabalhador não recebia mais dinheiro, mas um certificado de congratulações. Em contraste, quem não cumprisse sua cota perdia parcelas de seu salário.
                Uma crítica ao planejamento central criado por Guevara é a de que via o trabalhador como nada mais do que um instrumento do Estado. O próprio Guevara disse que, sob o socialismo cubano, o trabalhador tinha “o dever e o direito de garantir que todas as grandes linhas de desenvolvimento estabelecidas pelo governo estavam sendo cumpridas”. Em qualquer lugar, ele sustentou, era necessário “impor o princípio da autoridade” aos trabalhadores. O jornalista francês Léo Sauvage, em seu livro Che Guevara: O fracasso de um revolucionário, comentou que tais declarações marcaram o ministro da Indústria como um “membro de um todo-poderoso Estado, de um partido obedecido à risca”.
Em pé, escolares cubanos reafirmaram seu engajamento com a revolução. Em 1961, Guevara foi um dos principais artífices do ambicioso programa de reforma educacional que praticamente eliminou o analfabetismo em Cuba.
              Fossem quais fossem os méritos e desméritos dos princípios dos princípios econômicos de Guevara, seus programas terminaram em retumbantes fracassos. Mas tanto seus defensores quanto seus detratores concordam que um importante fator contribuiu enormemente para que as coisas dessem erradas: a brutal hostilidade dos Estados Unidos.
Em 1960, Guevara viajou pela Tchecoslováquia, China e Coreia do Norte assinando acordos comerciais e alarmando o governo dos Estados Unidos, que já via Cuba como uma cabeça-de-ponte comunista no hemisfério ocidental. 


Capítulo 5: Baía dos Porcos e a crise dos mísseis

                Os Estados Unidos e Cuba estavam em acelerada rota de colisão. As relações entre os dois países começaram a degenerar já nos primeiros dias da revolução. Em 10 de março de 1959, meses antes de Fidel consolidar seu poder, tornar pública suas intenções ou tomar qualquer propriedade norte-americana, Conselho de Segurança Nacional, em Washington, estava discutindo como “conduzir outro governo ao poder” e colocar a correr Guevara e os outros revolucionários.
                A presença de comunistas no governo cubano alarmou os Estados Unidos, e particularmente irritante era o papel destacado de Guevara. Já reconhecido como marxista, Che era a mais fulgurante figura da diplomacia cubana, fazendo frequentes visitas aos países comunistas. Era também o arquiteto da nova economia socialista e, na primavera de 1960, o responsável pelo treinamento das Forças Armadas. Tal combinação convencia Washington de que Cuba marchava a passos largos para o comunismo.
                O governo norte-americano também não conseguiu digerir a perda do controle direto sobre a ilha. “Até Castro, os EUA eram tão influentes em Cuba que o embaixador norte-americano era o segundo homem mais importante, algumas vezes até mais importante do que o presidente (cubano)”, disse o ex-embaixador em Havana Earl Smith, em depoimento ao Senado, em 1960.
                Reagindo à decretação da Lei da Reforma Agrária em 1959, a Casa Branca primeiro insistiu que Cuba indenizasse os proprietários norte-americanos pelo valor de mercado das terras confiscadas e, para mostrar sua determinação, diminuiu suas compras de açúcar cubano. Em maio e junho de 1960, as refinarias de propriedade norte-americana em Cuba recusaram-se a processar petróleo soviético comprado por Havana. Fidel retaliou encampando as empresas. Os Estados Unidos contra-atacaram suspendendo totalmente as compras de açúcar. Durante este período, aviões partiam da Flórida, pilotados por exilados cubanos, e sobrevoaram a ilha despejando panfletos anticastristas – e, ocasionalmente, bombas – enquanto as autoridades norte-americanas olhavam para outro lado.
       
Quando John Kennedy (à esquerda) sucedeu a Eisenhower (à direita) em 1961, herdou o plano de invadir Cuba. O novo presidente deu luz verde à CIA para seguir em frente com a aventura.
   Houve uma escalada na tensão em outubro de 1960, quando Fidel nacionalizou mais de trezentas empresas, muitas delas de proprietários norte-americanos. Washington respondeu com um embargo econômico, tornando impossível para Cuba comprar produtos e peças de reposição norte-americanos. Havia rumores – confirmados mais de uma década depois em audiências no Senado – de que a CIA começara a fazer planos para assassinar Fidel. Foi nessa altura que o serviço secreto norte-americano, agindo por ordem do presidente Eisenhower, começou a treinar exército de exilados para invadir Cuba.
O diretor da CIA, Allen Dulles, irmão do secretário de Estado John Foster Dulles, foi um dos mentores do golpe militar de 1954 n Guatemala. Em 1960 e 1961, Allen supervisionou o treinamento dos exilados cubanos que tentaram derrubar Fidel Castro. 
            Havia forte contingente de exilados cubanos vivendo nos EUA, sobretudo em Nova York e Miami, que pressionava por uma invasão. Alguns eram direitistas partidários do regime de Batista, outros moderados e liberais que tinham apoiado Fidel durante a revolução, mas estavam agora descontentes com o crescente controle esquerdista do governo. O plano de Eisenhower era treinar uma força de exilados para uma invasão que repetisse a bem-sucedida operação da CIA na Guatemala, em 1954. Quando John F. Kennedy foi empossado presidente, em janeiro de 1961, herdou o plano de invasão, deu seu consentimento e mandou seguir em frente.
                Um dos últimos atos de Eisenhower como presidente foi romper relações diplomáticas com Cuba, limpando o caminho para Kennedy iniciar a ação militar. Em 14 de abril de 1961, uma força de 1. 500 homens deixou Puerto Cabezas, na Nicarágua, a bordo de seis navios. O plano era invadir Cuba pela baía dos Porcos, um vasto mangue na costa centro-sul da ilha. Depois da tropa de exilados estabelecer uma cabeça-de-ponte, a CIA desembarcaria um novo governo formado no exílio com o devido reconhecimento, ajuda e apoiou dos Estados Unidos.
                Mas espiões cubanos tinham se infiltrado na comunidade exilada, e Fidel conhecia os detalhes da invasão. Para defender Cuba, o país foi dividido em três comandos regionais. Raul Castro ficou com a parte Leste; Guevara cuidou do Oeste; e Juan Almeida, outro líder guerrilheiro dos dias na Sierra Maestra, assumiu o Centro. Fidel Castro era o comando-em-chefe.
Cuba, o maior país do Caribe, fica a somente 150 quilômetros da costa dos Estados Unidos. A proximidade geográfica e uma longa história em comum transformaram Cuba em uma obsessão para os governos Eisenhower e Kennedy.
             Um dia antes da invasões, um navio de guerra abarrotado de fuzileiros navais norte-americanos simulou uma invasão em Pinar del Rio, na costa ocidental, colocando em alerta as forças comandadas por Guevara. Enquanto isso, oito bombardeiros B-26, pertencentes à CIA, atacavam aeroportos cubanos. Mas esses velhos aparelhos da Segunda Guerra Mundial infligiram poucos danos. Na noite de 17 de abril, o desembarque começou de forma caótica sob o comando de agentes da CIA.
                A força de exilados – desorganizada, atirando muitas vezes contra seus próprios homens e submetida a severos ataques aéreos – foi contida já na praia pela feroz resistência. Qualquer esperança de que o ataque pudesse incentivar um levante da oposição dentro de Cuba evaporou-se quando Fidel ordenou a prisão de 100. 000 suspeitos de serem contrarrevolucionários. Depois de três dias de combates, a força invasora rendeu-se – tinha sofrido 129 mortes e 1. 200 homens foram feitos prisioneiros.
Soldados do exército cubano marcham em direção à baía dos Porcos para enfrentar a invasão de exilados em abril de 1961
          Guevara não desempenhou nenhum papel pessoal nos combates, mas Tad Szulc, em sua explicação da vitória castrista, concede-lhe um crédito parcial: “Os revolucionários venceram porque a estratégia de Fidel era enormemente superior à da CIA, pois o moral revolucionário estava alto e porque Che Guevara, como chefe do Departamento de Instrução das Forças Armadas Revolucionárias, com a responsabilidade de treinar as milícias (...) tinha feito um excelente trabalho, preparando 200. 000 homens e mulheres para a guerra’.
                Duas semanas depois da vitória na Baía dos Porcos, Fidel pela primeira vez definiu explicitamente sua revolução como socialista. “A luta em nosso país é pelo socialismo”, sentenciou em discurso. Depois disso, ele abertamente se definiu como um socialista.
Milicianos cubanos combatem na baía dos Porcos. Em 72 horas, as forças cubanas esmagaram os invasores, matando 120 e capturando 1. 200 exilados. O trabalho de treinamento das milícias, dirigido por Guevara, demonstrara sua eficácia.
           A invasão da baía dos Porcos consolidou a convicção de Guevara de que a preocupação dos EUA na América Latina era defender os interesses econômicos norte-americanos, sem levar em consideração a soberania de cada país. Ele havia testemunhado o golpe armado pela CIA na Guatemala, o apoio de Washington ao governo Batista, o embargo econômico contra Cuba e, agora, a tentativa de derrubar o regime cubano. Não havia dúvidas, no seu entender, de que os EUA eram o inimigo da liberdade na América Latina.
                Em 1962, ciente de que os Estados Unidos continuavam dispostos a derrubar seu governo, Fidel pediu ajuda militar à União Soviética. Na primavera daquele ano, Guevara e Raul Castro foram diversas vezes a Moscou discutir possível apoio militar. Os detalhes das negociações entre cubanos e soviéticos ainda são desconhecidos, mas parece que o premiê Nikita Kruschev concordou em fornecer aviões de combate MIG e outros equipamentos bélicos avançados, para a satisfação de Guevara e Raul.
                Mais complexa foi a decisão soviética de instalar mísseis nucleares em Cuba. Naquele tempo, a União Soviética estava atrás dos Estados Unidos em armamento nuclear e defrontava-se com a presença de mísseis norte-americanos na Turquia, junto à fronteira soviética. A presença dessas armas poderia ser contrabalançada instalando seus próprios mísseis a 150 quilômetros da costa dos Estados Unidos. A ideia parece ter sido dos cubanos, acreditando que a presença de armas nucleares na ilha serviria de dissuasão para qualquer outra invasão.
             
Soldados cubanos celebram a vitória na baía dos Porcos, em 19 de abril de 1961
         Em outubro de 1962, aviões espiões norte-americanos detectaram a presença dos mísseis soviéticos em Cuba. Kennedy tornou pública e exigiu a retirada das armas. A queda-de-braço que se seguiu ficou conhecida como a Crise dos Mísseis e levou o mundo às fronteiras da guerra nuclear. Durante vários e tensos dias, Kennedy e Kruschev negociaram, com seus países em estado de alerta máximo. Em 22 de outubro, os EUA concentraram uma grande força de fuzileiros navais na Flórida, pronta para iniciar a invasão de Cuba. E Kennedy apareceu na televisão para pronunciar um discurso crucial: anunciou o bloqueio naval de Cuba para impedir a chegada de mais mísseis soviéticos e exigiu novamente a retirada de todo arsenal nuclear do solo cubano. Se os soviéticos recusassem remover o armamento, advertiu, os Estados Unidos não hesitariam em lutar uma guerra nuclear.
                Era evidente que Kruschev só tinha duas opções: aceitar uma guerra nuclear ou bater em retirada. No dia 28, concordou em levar embora os mísseis em troca da remoção das armas nucleares norte-americanas na Turquia e do compromisso de que os Estados Unidos não invadiriam Cuba. A crise estava contornada, mas Fidel ficou furioso, pois Kruschev não o consultara sobre o acordo com Washington. O resultado foi o esfriamento das relações entre Havana e Moscou.
Guevara com o dirigente soviético Nikita Kruschev, em Moscou. No ano de 1962, Guevara e Raul Castro fizeram diversas viagens à União Soviética em busca de ajuda militar, obtendo aviões de combate e outras armas. A decisão de enviar também mísseis nucleares causaria uma crise internacional. 
          Para Guevara, a atitude da União Soviética mostrava que as superpotências viam os países subdesenvolvidos como peões em um jogo pela hegemonia mundial. Dessa forma ele passou a dedicar todos os seus esforços diplomáticos à tarefa de unir o Terceiro Mundo.
                Depois da Crise dos Mísseis, Fidel e Guevara tiveram que enfrentar a deterioração da economia cubana. Os planos de Guevara e seus assessores produziram um monte de problemas, agravados pelo bloqueio norte-americano e pela hostilidade do sistema financeiro internacional – assim como pela insatisfação dos trabalhadores com as espartanas condições impostas pelo sistema de Guevara.
Foto do Pentágono mostra mísseis nucleares de médio alcance instalados pelos soviéticos em Cuba.
            Sob o comando de Che, a economia não apenas estava longe das metas fixadas como sofrera severos danos. A mal concebida tentativa de diversificar a produção agrícola degenerara em falta de alimentos, o que levou à imposição de racionamentos. A renda de Cuba, derivada da exportação de colheitas, já pequena, chegou perto do nada. A falta de peças de reposição e de adequado treinamento técnico colocaram abaixo os planos de industrialização. O programa de “incentivos morais” causou rápida queda de produtividade e o aumento do absentismo no trabalho. O único sucesso demonstrável da gestão Guevara no INRA foram os avanços na alfabetização e assistência médica.
O navio de guerra norte-americano Vesole aproxima-se da embarcação soviética Polzunov, ao largo de Cuba, para inspecioná-la, em novembro de 1962.
           Mais tarde, Guevara admitiu alguns de seus erros como ministro da Indústrias, como o fracasso de seu programa para produzir colheitas que diminuíssem a dependência cubana com relação ao açúcar. “Nosso primeiro erro”, escreveu, “foi o modo com que conduzimos nossa diversificação. Em lugar de embarcar na diversificação gradualmente, tentamos tudo de uma única vez, o que produziu um declínio geral na produção agrícola. Toda a história econômica de Cuba tem demonstrado que nenhuma outra atividade agrícola pode dar o mesmo retorno a essas terras daquele gerado pelo cultivo de cana-de-açúcar”.
                Apesar desses transtornos, Guevara insistia que o objetivo final era “construir o comunismo simultaneamente com sua nova base. Nós devemos fazer o novo homem”. Não tinha dúvidas de que a sociedade cubana deveria produzir novos homens e mulheres – com melhor treinamento técnico, ardente compromisso com a construção da nova sociedade e conhecimento e habilidade para aumentar a produtividade – antes que Cuba tivesse uma economia forte.
Fila para comprar pão em Havana. O programa econômico de Guevara foi um fracasso, o que levou à imposição de racionamento de alimentos e bens de consumo. No final de 1963, Guevara foi removido de todos os postos importantes que ocupava na equipe econômica do governo. 
            A visão de socialismo de Guevara era diferente da existente na URSS no China. Ele colocava ênfase menos na eficiente administração da economia e mais no despertar espiritual do moral entre os cidadãos. “A felicidade do povo é a base de nossa luta”, escreveu. “Isso não é uma questão de quantos quilos de carne alguém pode comer, ou quantas vezes por ano ele pode ir à praia, ou que quantidade de ornamentos importados uma pessoa pode comprar com seu salário. O que realmente importa é que o indivíduo sinta-se mais completo, com muito mais riqueza interior e muito mais responsabilidade”.
                Da teoria para a prática, as experiências socialistas de Guevara produziram condições mais duras de trabalho, a redução das liberdades civis, severos deslocamentos econômicos para um vasto segmento da sociedade cubana – e, por fim, o fracasso da economia do país como um todo. No final de 1963, Guevara já não era mais o presidente do Banco Central, e seu papel no comando da economia tinha sido bastante reduzido. Sua atividade estava mais ou menos limitada à diplomacia e às relações internacionais.
Guevara toma Chimarrão com o presidente uruguaio Eduardo Victor Haedo, em Punta del Este, em 1961.

Capítulo 6: O embaixador da revolução
                Desde o começo, o simpático e carismático Che Guevara tinha sido o melhor embaixador da revolução cubana. No verão de 1959, ele fez a primeira ofensiva diplomática do novo governo visitando Egito, Índia, Paquistão, Japão e Indonésia em busca de apoio político e econômico. Sua reputação como diplomata cresceu durante seus cinco anos na direção da economia cubana, quando viajou por todos os continente negociando acordos comerciais. Seu desempenho na Conferência Interamericana de Punta del Este, no Uruguai, em agosto de 1961, demonstrou sua crescente importância na diplomacia internacional.
                O governo Kennedy, pouco antes de lançar a invasão da baía dos Porcos, tentara cativar a América Latina com um massivo programa de ajuda, a Aliança para o Progresso. Depois do fracasso da invasão e da consequente erosão do prestígio e da credibilidade de Washington, tornou-se imperativo para Kennedy causar boa impressão em Punta del Este, onde estavam reunidos representantes de todos os países latino-americanos.
                A grande notícia de Punta del Este, porém, foi o discurso de Guevara criticando as motivações do programa de ajuda de Kennedy. Os EUA estão interessados em manter o status quo na América Latina e não em produzir reformas reais, sustentou o representante de Cuba. “Os especialistas norte-americanos jamais falam em reformas agrárias”, disparou Guevara na conferência. “Eles preferem assuntos seguros como o suprimento d’agua. Em suma, eles parecem estar preparando a revolução dos sanitários”.
                Guevara lembrou o papel dos Estados Unidos na invasão da baía dos Porcos e exigiu de Washington “a garantia de não-agressão contra nossas fronteiras”. Ele se queixou dos esforços norte-americanos para isolar Cuba dos outros países latino-americanos e comentou que o exemplo da revolução cubana iria naturalmente se espalhar pela América Latina por que “é alguma coisa espiritual que transcende fronteiras”. Ao mesmo tempo, garantiu que Cuba não exportaria a revolução enviando armas para outros países, dando a entender que Havana estava disposta a conversar com o governo norte-americano sobre o relaxamento das tensões.
Guevara (à extrema direita) foi o único entre 21 delegados latino-americanos e dos Estados Unidos a não votar a favor da Aliança para o Progresso. Ele condenou o programa como "um veículo para esterilizar a revolução cubana".
             O representante norte-americano em Punta del Este, Richard Goodwin, porém, tinha ordens claras para evitar qualquer contato com Guevara. Ainda assim, alguns delegados latino-americanos deram um jeito de reunir os dois, que passaram horas discutindo meios de normalizar as relações. Durante a conferencia, Guevara voou para Buenos Aires, onde foi recebido pelo presidente Arturo Frondizi. Também foi a Brasília, para ser condecorado pelo presidente Jânio Quadros, ansioso para demonstrar que o Brasil tinha uma política externa independente.
                Na verdade, Guevara era um assunto quente demais para qualquer um desses interlocutores. Frondizi foi derrubado por um golpe militar, Jânio renunciou durante aguda crise política, e o norte-americano Goodwin recebeu áspera reprimenda do Senado de seu país. Em janeiro de 1962, Cuba foi expulsa da Conferência Interamericana por ter aderido ao comunismo. Assim, nada de proveitoso resultou das negociações que, com um pouco de boa vontade, poderiam ter tornado mais amigáveis as relações entre Havana e outros governos latino-americanos ou mesmo com o governo dos Estados Unidos.
                Depois que os soviéticos removeram os mísseis nucleares de Cuba sem consultar os cubanos, Guevara já não poupava críticas à União Soviéticas. Sua proposta de fomentar a revolução em qualquer parte do mundo chocava-se frontalmente com a ideologia oficial soviética, que, em nome da “coexistência pacífica” com os Estados Unidos, julgava que a maioria das revoluções podia esperar algumas gerações.
                O homem que havia assinado em 1960 o primeiro acordo comercial transformando a União Soviética no principal parceiro comercial de Cuba agora via Moscou quase como um inimigo. Em maio de 1963 e janeiro de 1964, Fidel foi à capital soviética aparar as arestas, retornando com novos tratados de ajuda econômica, essenciais para manter em pé as combalidas finanças da ilha. De volta a Havana, Fidel anunciou que sustentaria a ajuda aos revolucionários de outros países e pediu que os outros países parassem de intervir nos negócios internos de Cuba – um discurso que os soviéticos gostaram de ouvir. Ainda que Havana tenha continuado a ajudar revolucionários estrangeiros, em seus discursos públicos Fidel manteve a versão moderada inspirada pela União Soviética, de quem Cuba era agora totalmente dependente.
Guevara como chefe da delegação cubana à conferência de Punta del Este, em 1961. A pauta da reunião era o programa de ajuda econômica para a América Latina do presidente Kennedy, a Aliança para o Progresso.
             A economia cubana sofrera um novo choque em julho de 1964, quando catorze países latino-americanos acusaram Cuba de ajudar movimentos esquerdistas na Venezuela – praticamente todos os países do hemisfério se recusavam a manter contatos comerciais com o país de Fidel. O apoio aos movimentos revolucionários latino-americanos, a mais querida crença de Guevara, custara um preço altíssimo.
                Apesar disso, Fidel ainda enviou Guevara a Moscou em novembro. A viagem foi um fracasso, e Che retornou poucos dias depois, sendo substituído por um membro do Partido Comunista Cubano, que levou adiante um novo acordo comercial. Nomeado representante de Cuba na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, Guevara fez um discurso destinado a aprofundar a crise. No dia 11 de dezembro de 1964, da tribuna da ONU, deu a entender que a União Soviética tinha renegado os princípios marxistas, ignorando os países e movimentos revolucionários do Terceiro Mundo, enquanto dava atenção apenas às suas relações com os Estados Unidos e os países capitalistas.
                “Se nós estamos garantindo a paz mundial, a coexistência pacífica não pode ser apenas para os poderosos (...) Como marxistas, nós sustentamos que a coexistência pacífica entre as nações não pode incluir a coexistência entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos”, criticou Guevara. Também exortou as superpotências a desmantelar seus arsenais nucleares e falou da “obrigação de todos os Estados de respeitarem as presentes fronteiras de outros Estados e evitar qualquer agressão, mesmo com armas convencionais”, enquanto mantinha em aberto o direito da luta armada contra a opressão dentro de qualquer país.
Guevara recebe uma delegação chinesa em Cuba, em 1961, um ano depois de seu encontro com o líder chinês Mao Tsé-Tung e do estabelecimento de sólidas relações entre os dois países.
              Guevara não era apenas um homem que atacava abertamente os Estados Unidos, mas também alguém que criticava a União Soviética nas entrelinhas. “O regime castrista e o imperialismo ianque estão envolvidos em uma luta de morte, e nós sabemos que um dos dois precisa morrer”, tinha dito no começo de 1960, quando ainda era poderoso no governo cubano. Agora, poucos dias depois de seu discurso na ONU, ele apareceu no programa “Face the nation”, na rede de televisão norte-americana CBS, para ampliar as dimensões desse conflito: “os combatentes da liberdade cubanos estão combatendo a opressão e o imperialismo em cada país da América Latina e fazendo com que a revolução triunfe através do Terceiro Mundo”.
                O discurso na ONU deixou claro que as simpatias de Guevara na luta contra os Estados Unidos não estavam com os comunistas ortodoxos e com a União Soviética. Ele preferia apostar no Terceiro Mundo e nos comunistas dispostos a pegar em armas. Em contraste, Fidel estava bem próximo à ortodoxia comunista, pelo menos em público. Havia outra divergência entre os dois: a amarga disputa ideológica entre Moscou e Pequim, que começara em 1960 e culminara com o rompimento completo em 1963. Guevara apoiava a China, enquanto Fidel ainda não fizera publicamente sua escolha. Em 1966, ele finalmente se colocou ao lado da União Soviética e passou a atacar os chineses em seus discursos.
                Fidel estava interessado em expandir relações com o Terceiro Mundo e, para isso, Guevara era perfeito. No final de 1964, Che viajou durante meses pela África, conversando com líderes de oito países sobre a criação de um organismo representativo dos países em desenvolvimento. A primeira parada foi na Argélia, que poucos anos antes conquistara sua independência da França depois de sangrenta guerra de guerrilhas. “A África representa um dos mais importantes, senão o mais importante, campos de batalha contra todas as formas de exploração existentes no mundo, contra o imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”, disse aos jornalistas, em Argel.
                No Mali, Guevara preocupou-se em pregar a luta armada na América Latina. Depois, foi ao Congo, Guiné, Gana, Daomé, Tanzânia e, por fim, ao Egito, onde se encontrou com o presidente Gamal Abdel Nasser, em 18 de fevereiro de 1965. “Após visitar sete países africanos”, disse Guevara a Nasser, “estou convicto de que é possível criar uma frente comum de luta contra o imperialismo, colonialismo e neocolonialismo”.
                A jornada pela África foi brevemente interrompida por uma viagem à China, que estava assinando um acordo comercial com Cuba. O relacionamento entre Che e o governo de Pequim era excelente desde sua primeira viagem ao país, em 1960. Naquela ocasião, Guevara expressara sua admiração pelo regime chinês, dizendo ao vice-premiê Chu Em-lai: “A grande experiência do povo chinês em seus 22 anos de luta no interior do país (...) revela novos caminhos para a América Latina”. A partir daí, os chineses viam em Guevara o seu principal aliado no governo cubano. Assim, em 1965 ele teve calorosa acolhida em Pequim.
Guevara fuma um charuto enquanto escuta o pronunciamento do embaixador norte-americano no Conselho de Segurança da ONU, Adlai Stevenson, em 1964.
            Ao deixar a China, Che estava pronto para condenar seu rival, a União Soviética. Em discurso feito na Conferência Afro-Asiática na Argélia, em 26 de fevereiro de 1965, Guevara fez críticas contundentes ao que via como a incapacidade da União Soviética em fornecer ajuda adequada aos movimentos revolucionários. Com uma perspectiva internacional da revolução, ele disse: “Os países socialistas têm o dever vital de fazer dessas revoltas contra o sistema imperialista um sucesso”. Não poupou palavras ásperas, desta vez: “Os países socialistas têm o dever moral de liquidar com sua tácita cumplicidade com os países exploradores do Ocidente”. Os delegados à Conferência Afro-Asiática podem ter aplaudido com emoção, mas a União Soviética não estava nada contente com as exigências extremadas de Guevara.
                Um mês mais tarde, no Egito, Guevara voltou à carga, criticando a política econômica soviética em uma publicação oficial egípcia. Parece que escolhera a ocasião para romper publicamente com Moscou – e isso teria seu preço. No dia 4 de março de 1965, quando desembarcou em Havana, Fidel e outros líderes cubanos estavam lá para recebe-lo, mas a recepção foi gélida. Fidel estava furioso com as críticas de Guevara à União Soviética, país de quem Cuba dependia militar e economicamente. Logo depois, Che fez um discurso para dirigentes juvenis no Ministério da Indústria e, então, desapareceu das vistas do público por 18 meses.
As críticas de Guevara aos soviéticos irritaram Fidel, que não desejava colocar em risco os importantes acordos comerciais firmados com Moscou. Em 1965, Guevara desapareceu das vistas do público. Ele tinha optado por retornar à vida de guerrilheiro.
            O desaparecimento de Guevara era um mistério em Cuba e em todo o mundo. No passado, ele tinha escrito à sua mãe que passaria um mês no campo cortando cana e ficaria durante cinco anos dirigindo a economia do país. Desta vez, porém, nada disso parecia estar acontecendo. Em maio, Ricardo Rojo bombardeou Havana com telegramas sobre o grave estado de saúde de Célia de La Senna. Por telefone, falou com Aleida, mulher de Guevara, que se mostrou confusa sobre o paradeiro do marido. Em 19 de maio, a mãe de Guevara morreu, sem que o filho desse notícia. Havia especulações variadas: estava morto; aprisionado por Fidel; fora vítima de um colapso nervoso; tinha uma doença fatal. Outros rumores indicavam que estava vivo e lutando numa nova revolução em algum lugar da América Latina, ou África e mesmo no Vietnam – muitos juravam tê-lo visto no selva, carregando o seu fuzil.
                Na verdade, Guevara e Fidel estavam tentando definir um novo papel para Che dentro da revolução cubana e com relação ao tipo de revolução mundial que ambos apoiariam. O programa econômico de Guevara estava morto e enterrado e, através dos anos, ele tinha ofendido muitos líderes cubanos com sua arrogância e exigências moralistas. Além do mais, não era cubano de nascimento, e isso era usado contra ele. Por fim, suas críticas à União Soviética irritaram aqueles dirigentes de Havana que desejavam um estreito relacionamento com Moscou ou, ao menos, conseguir tanta ajuda quanto fosse possível.
Guevara conversa com o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, durante sua viagem à África em 1965. Nesse período, ele defendeu a criação de organismo capaz de representar os interesses dos países em desenvolvimento.
           A soma disso tudo tornava impossível para Guevara manter seu papel na revolução cubana, seja como dirigente econômico, ou diplomata de destaque – fato que ele e Fidel conheciam muito bem. Além do mais, Guevara tinha desenvolvido verdadeira obsessão pela revolução internacional e queria comprometer o governo cubano com todo tipo de lutas revolucionárias. Talvez, estivesse aborrecido como membro da burocracia governamental e suspirasse pelos heroicos dias da guerra de guerrilha; talvez desejasse provar pessoalmente a validade de suas teorias bélicas.
                De qualquer forma, Guevara voltou à África para lutar ao lado das forças esquerdistas, em uma guerra na República Democrática do Congo. É possível que pensasse que movimentos guerrilheiros providenciariam os meios ideais para colocar em prática suas teorias e, por certo, imaginou que o Congo poderia acender o estopim da revolução. O governo socialista de Bem-Bella, da Argélia – o melhor aliado de Cuba no continente africano – tinha sido derrubado e, dessa perspectiva, o retorno de Guevara poderia ser uma tentativa de manter viva a revolução na África.
Joseph Kasavubu, primeiro presidente da República Democrática do Congo (hoje Zaire). Pouco depois da independência do país. em 1960, começou uma sangrenta guerra civil. Guevara esteva lá, para ajudar as forças esquerdistas.
             Sabendo que estava arriscando a vida, Guevara escreveu inúmeras cartas para Fidel, para seus pais e para seus filhos. Pediu ao líder cubano que tornasse pública essa correspondência no momento apropriado. E, como mais tarde revelado, relembrou o encontro na cidade do México e as lutas travadas por ambos para pedir formalmente a renúncia de todos seus postos no governo e, até mesmo, de sua cidadania cubana.
                “Outras terras pedem a ajuda de meus modestos esforços”, escreveu. “Eu posso fazer o que você não pode, por causa de suas responsabilidades em Cuba. Chegou o momento de nos separarmos. Saiba que falo isso com uma mistura de alegria e dor. Aqui, eu estou deixando minhas mais puras esperanças como um construtor e o mais querido entre os que me são queridos (...) e estou deixando o povo que me aceitou como filho. Lágrimas partem o meu espírito. Para novos campos de batalha eu devo levar a fé que você me ensinou, o sentimento de que estou imbuído do mais sagrado dever: lutar contra o imperialismo, onde ele esteja”.
                Não há versão oficial da campanha congolesa de Guevara, mas parece que, com a ajuda de Fidel, ele viajou em julho de 1965 para Bazzaville, capital do Congo. Acompanhado por uma tropa de elite de 125 guerrilheiros cubanos, ele foi lutar na República Democrática do Congo – em 1972, o país mudou seu nome para Zaire -, ensanguentado por cinco anos de guerra civil.
                O país tornara-se independente da Bélgica em 1960 e logo começaram os combates entre as diferentes facções. O primeiro-ministro esquerdista Patrick Lumumba foi assassinado por um mercenário belga a serviço do coronel Joseph Mobutu, que estava aliado ao direitista Moise Tshombe. Ambos controlavam a rica província de Katanga, onde diversas multinacionais exploravam minérios, e recebiam ajuda da CIA. Tshombe emergira como o principal líder do país, mas agora enfrentava a oposição de rebeldes esquerdistas, parcialmente influenciados pela memória de Lumumba. Guevara e os cubanos foram apoiar esses rebeldes, enquanto os Estados Unidos ajudavam o outro lado.
               
Patrice Lumumbu (à direita) e um aliado, Joseph Okito, preso pelas forças do coronel Joseph Mobutu, em dezembro de 1960. Lumumba, um símbolo da luta pela libertação da África Negra, foi executado pouco mais tarde.
        Poucos meses depois, Guevara percebeu que não havia esperança de vitória. Ele culpou mais tarde a incompetência dos rebeldes e os acusou de haver cometido atrocidades. “O elemento humano fracassou”, disse ao jornalista argentino Ciro Bustos, na Bolívia, dois anos depois. “Não havia desejo de lutar, os líderes eram corruptos. Numa palavra, não havia nada a fazer”. Há versões de que Guevara foi chamado de volta por Fidel, que estava sendo pressionado por soviéticos e chineses, cujos interesses estratégicos na região estavam em conflito com os objetivos do guerrilheiro. De qualquer forma, a expedição de Guevara ao Congo permanece envolva em mistério. Em março de 1966, Guevara estava de volta a Havana. Uma vez mais as forças guerrilheiras tinham fracassado. Mas se tratava apenas de uma pausa antes de Guevara empreender sua última e fatal aventura.
Apesar do fracasso de sua campanha no Congo, Guevara mantinha o compromisso com uma revolução socialista de dimensões mundiais: "Criar um, dois, muitos vietnans - esta é nossa palavra de ordem", disse Guevara, descrevendo a estratégia de formar focos revolucionários em vários países.


Capítulo 7: Desastre na Bolívia
                Qual poderia ser o futuro de Guevara em Cuba? Sua política econômica fracassara e sua diplomacia gerara controvérsias. O princípio com o qual ele se identificava, a ajuda ativa aos movimentos guerrilheiros, não conseguiria sucesso nos lugares onde tivera participação pessoal – Venezuela e Congo. O auxílio aos revolucionários estrangeiros ajudara a isolar Cuba dos países capitalistas e ameaçava seu isolamento com a União Soviética. Ainda assim, Fidel estava disposto a bancar uma nova tentativa de acender o estopim da revolução desta vez na Bolívia.
                Muitos observadores garantem que havia profundas divergências entre os dois comandantes cubanos, e que Fidel enviou Guevara para a Bolívia como forma de se livrar dele. Apesar de ambos concordarem na questão do Terceiro Mundo, a ausência de Guevara naquilo que deveria ser o escoamento de seus esforços diplomáticos – a primeira Conferencia Tricontinental, em janeiro de 1966 – alimentou a especulação sobre uma rixa entre os dois.
                Fruto da viagem de Guevara à África, a primeira Conferência Tricontinental, reunindo representantes de países em desenvolvimento da América Latina, Ásia e África, foi realizada em Havana, o que concedia automaticamente a Fidel e a Cuba a condição de líderes da organização, que seria o embrião do atual Movimento dos Países Não-alinhados. Baseada no princípio de que os países do Terceiro Mundo deviam evitar alianças estreitas tanto com os Estados Unidos quanto a União Soviética, a Conferência Tricontinental era, em grande parte, produto da ideologia de Che Guevara. Muitos oradores o elogiaram, fazendo explodir aplausos entre os outros delegados. O representante da Venezuela, por exemplo, um político da oposição, disse que “nós estamos seguindo o heroico exemplo do comandante Ernesto Che Guevara”. Em seu discurso, Fidel também lamentou sua ausência, mas aproveitou para desmentir rumores de que tinha sido eliminado. Isso serviu apenas para aumentar a curiosidade sobre o verdadeiro paradeiro de Guevara, que naquele momento ainda estava em Cuba, planejando secretamente a insurreição na Bolívia.
                Em 1972, confrontado com a acusação de que se livrara de Guevara mandando-o para a Bolívia, Fidel desabafou com o jornalista americano Herbert Matthews: ninguém sabe o que eu sentia por ele. A seu próprio pedido, guardei silencia durante seis meses, e isso foi muito difícil. Havia pessoas que já falavam que eu o tinha matado. No México, quando ele se juntou à expedição do Granma, foi combinado que, uma vez bem-sucedida a revolução, iria embora lutar em outras revoluções. Não sei como fui capaz de manter em Cuba por tanto tempo. Mas eu tinha prometido que poderia partir quando quisesse e que eu não tentaria trazê-lo de volta”.
Guevara na Bolívia no começo de sua última campanha guerrilheira. Ele chegou ao país em novembro de 1966, com dezoito cubanos, e estabeleceu seu quartel-general em Nancahuazú, nas montanhas. Pensava repetir a Fórmula da Revolução Cubana, mas as coisas eram diferentes naquele país sul-americano.
             Dessa perspectiva, pelo menos, a campanha boliviana de Guevara foi um passo lógico em sua visão da América Latina e da revolução mundial. Mais tarde, houve alguma especulação de que se tornara uma necessidade psicológica para Che participar de uma luta real na América Latina. E há muitas evidencias de que Guevara queria tentar provar, uma vez mais, suas teorias sobre a guerra de guerrilha e participar daquilo que era a obsessão de sua vida: a libertação da América Latina. A revolução continental era a primeira, talvez a mais importante, das preocupações de Guevara. Sua primeira mulher, Hilda Gadea, afirmou que, no México, Guevara descreveu a luta em Cuba como “apenas um passo em sua luta latino-americana”. Outros antigos companheiros contaram a Matthews que, desde o começo, Che planejava participar da revolução cubana e, depois, procurar outras missões. E que, já no outono de 1964, havia expressado a Fidel seu desejo de deixar Cuba.
                Ao longo dos anos 60 Guevara, o campeão da revolução no Terceiro Mundo, tinha apoiado quase todos os movimentos guerrilheiros que buscaram a ajuda de Cuba. Seu ensaio de 1965, “Vietnam e a Luta Mundial por Liberdade”, é um bom exemplo de seu pensamento. No momento em que o escreveu, o envolvimento norte-americano no Sudeste Asiático estava em plena escalada e tomava corpo um movimento internacional contra a intervenção. Usando a militância antiamericana como ponto de partida, ele discutiu as perspectivas de revolução na América Latina, África e Ásia. “Na América Latina”, escreveu, “a luta avança, de armas na mão, na Guatemala, Colômbia, Venezuela e Bolívia, e os primeiros focos já estão aparecendo no Brasil”.
                Guevara ressalta a herança comum da opressão no continente e a linguagem e os costumes semelhantes como bases para a unidade. Pergunta que tipo de rebelião seria apropriado para essas condições, e responde: “A luta nas Américas terá, um dia, dimensões continentais. Será palco de muitas grandes batalhas em nome da humanidade, em nome de sua libertação. Em comparação com o cenário desse combate de dimensões continentais, os conflitos atuais são apenas episódios, mas eles já estão fazendo os mártires que figurarão na história das Américas, por terem dado sua cota de sangue nesse estágio final da luta pela completa libertação da humanidade”.
Um grupo de camponeses bolivianas. Indígenas que pouco falavam espanhol, os camponeses dos Andes suspeitaram daqueles guerrilheiros barbudos, brancos e bem-educados, preferindo colaborar com as forças do governo a apoiar a rebelião.
            Em uma visão apocalíptica da revolução, Guevara imaginou a formação de “dois, três, muitos vietnamitas” explodindo por todo o mundo, provocando a destruição final do imperialismo.
                Não há dúvidas de que a revolução mundial era o principal objetivo de Guevara. Ele e Fidel escolheram a Bolívia porque o país está no centro da América do Sul, cercado pela Argentina, Chile, Peru, Brasil e Paraguai. Guevara, muitas vezes, deixou transparecer que sua mais profunda ambição era conduzir uma revolução em sua Argentina natal, de modo que via a Bolívia, na fronteira norte do país, como um começo.
                Mesmo na extrema esquerda há críticas à decisão de Fidel e Guevara pela escolha da Bolívia como estopim da revolução continental. A estratégia de Che era, aparentemente, iniciar a luta de guerrilhas no país e, uma vez o processo em andamento, organizar novos focos nos países vizinhos. Ele, e talvez Fidel, acreditava que o sucesso na Bolívia e em outros lugares da América Latina provocaria a intervenção norte-americana, o que causaria indignação e alimentaria outras rebeliões no continente.
                O presidente da Bolívia era o general René Barrientos, que fizera parte da junta militar que tomara o poder em 1964. No ano seguinte, os militares empregaram o exército para esmagar a resistência dos sindicatos de mineiros e, em 1966, Barrientos foi eleito presidente. Guevara supunha que os militares e o presidente bolivianos estavam enfraquecidos o suficiente para serem derrotados e derrubados. E que receberia apoio dos mineiros e esquerdistas bolivianos, de outras forças revolucionárias latino-americanas e da grande população indígena. Todas essas suposições se mostraram erradas.
            
Guevara em um acampamento guerrilheiro em setembro de 1967. Durante os três últimos meses da campanha boliviana, o pequeno grupo guerrilheiro esteve em constante fuga, enquanto Guevara sofria severos ataques de asma. Finalmente, em 8 de outubro, os rebeldes foram derrotados e Guevara capturado. 
 
         O planejamento inicial contava com o compromisso de Fidel de substancial ajuda em pessoal, recursos e dinheiro. Embora os detalhes do estágio de planejamento não tenham sido oficialmente revelados, parece que Che pode ter ido à Bolívia realizar levantamentos preliminares durante a primeira metade de 1966. Voltou, então, para Cuba e dedicou-se a organizar a expedição, enviando agentes cubanos para comprar uma fazenda que serviria de base para as primeiras operações guerrilheiras. Outros cubanos começaram a chegar na segunda metade do ano, e Guevara entrou no país no dia 3 de novembro, disfarçado de homem de negócios uruguaio, com seu cabelo cortado curto e barba raspada. Ele saíra de Havana em voo regular da Iberia, empresa aérea espanhola, fez escala em Madri, e dali seguiu para São Paulo. Prosseguiu de ônibus até Corumbá, no Mato Grosso, onde cruzou para Puerto Suarez, em território boliviano, e dali foi até a cidade de Cochabamba.
                Há relatos detalhados das atividades de Guevara desde o momento em que ele chegou à base guerrilheira em Nancahuazú, próxima ao Camiri, um importante centro de mineração, em 7 de novembro, porque, como de hábito, manteve um diário de seu cotidiano, mais tarde publicado como “O Diário Boliviano de Che Guevara”. Seus escritos são suplementados pelas anotações de outros guerrilheiros cubanos que copiaram os hábitos do comandante.
                No dia 7 de novembro, é possível ler no diário: “Um novo estágio começa hoje”. Guevara tinha chegado à fazenda, nas montanhas da região central da Bolívia, e começado a treinar seus homens, a recrutar bolivianos e a negociar com os esquerdistas locais maior apoio. Seu grande desapontamento foi registrado já no dia 1° de Janeiro de 1967, quando Mario Monje, líder do Partido Comunista Boliviano, se recusou a apoiar a expedição, porque Guevara insistia em comandar as operações. Foi um duro golpe para a pequena força guerrilheira, com sérias necessidades, não apenas de mais combatentes, suprimentos e armas, mas também de apoio nas cidades.
O passaporte falso usado por Guevara para entrar na Bolívia. O documento o identifica como um homem de negócios uruguaio, e a foto o mostra sem barba e com os cabelos cortados curtos
            Guevara foi capaz de arrebanhar a solidariedade de comunistas dissidentes e outros grupos políticos, mas seu principal apoio consistia basicamente de uma dúzia de recrutas. Não eram, por certo, forças suficientes para iniciar uma revolução. Em janeiro, ele continuava estocando suprimentos, que escondia em cavernas da região, e treinando seus homens. Estes sofriam de enfermidades variadas e havia muitas querelas e dissidências entre a tropa.
                No primeiro dia de fevereiro, ele começou o treinamento de marcha, que pretendia fazer em 25 dias, mas terminou consumindo 45, pois os guerrilheiros se perdiam com frequência, além de enfrentarem mau tempo, doenças e uma série de dificuldades decorrentes da inexperiência. O próprio Guevara sofria um forte ataque de asma. Então, Fidel já anunciara ao mundo que Guevara estava em “algum lugar na América do Sul” liderando uma revolução. Regimes direitistas em todo o continente tremerem. No altiplano boliviano, porém, Che e um pequeno bando de homens lutavam para continuar vivos.
                Em março, tudo se complicou. Dois recrutas bolivianos desertaram e foram detidos por militares, revelando a existência da base de treinamento em Nancahuazú. Existe alguma especulação de que Guevara foi traído por um de seus principais contatos na Bolívia, “Tânia”, que deixou documentos incriminatórios em um jipe – enquanto transportava suprimentos para os guerrilheiros -, os quais foram encontrados por militares bolivianos. “Tânia” era o nome de guerra de Tamara Bunke Bider, uma argentina descendente de alemães. Guevara conhecia-a há anos e fora seu amante. O escritor Daniel James e outros autores afirmam que ela era agente da Alemanha Oriental e da União Soviética, que talvez tenha sabotado a expedição de Guevara. Mas não há nenhuma prova que corrobore essa visão.
                O exército boliviano chegou ao acampamento no dia 17 de março e descobriu um dos diários da guerrilha e algumas fotos de Guevara. Havia, também, certa quantidade de suprimentos e documentos cuja destruição Che negligenciara – tudo isso constituía prova conclusiva de que o notório Che Guevara estava na região, tentando começar outra revolução.
Esta foto de Guevara foi divulgada em Cuba em abril de 1966 para desmentir rumores de que o líder revolucionário estava morto. Ironicamente, esta e outras fotos acabaram ajudando o governo boliviano a seguir o rastro de Guevara.
               Dois dias depois, o grupo de Guevara chegou às vizinhanças do acampamento e emboscou tropas bolivianas em Nancahuazú. Nesse ponto, Guevara anotou, suas forças avançaram do primeiro para o segundo estágio da guerra de guerrilha. O primeiro era tornar-se familiar com o terreno e realizar operações de coleta de suprimentos; o segundo envolvia agressão ativa. E até sua morte, em outubro, Guevara e seus homens participaram de uma série de escaramuças com o Exército boliviano e seus assessores norte-americanos.
                A campanha de Guevara, porém, já embarcara na canoa da derrota. Em Sierra Maestra, os rebeldes tinham o apoio dos camponeses, cubanos como eles. Na Bolívia, entretanto, não foram capazes de recrutar um único camponês. Eles eram índios que falavam pouco espanhol e viam Guevara com estranheza. O comandante os tinha idealizado como socialistas incipientes que, por causa de uma básica, ingênua bondade, iriam naturalmente apoiar a guerrilha. Na realidade, os camponeses suspeitavam daqueles homens barbudos, a maioria dos quais eram brancos, estrangeiros, educados, classe média e que pouco sabiam da situação específica da região.
                Muitos camponeses consideravam os homens de Guevara como intrusos tentando iniciar uma guerra, e não como os “libertadores”, que os próprios guerrilheiros se imaginavam, então, eles cooperavam com o exército, informando onde estavam os rebeldes. A irritação de Guevara com a pouca disposição dos camponeses em ajuda-lo era crescente. Em abril, escreveu em seu diário que “a base camponesa não está ainda desenvolvida, embora pareça que, por meio de sistemático terror, nós teremos a neutralidade da maioria deles”.
Um oficial boliviano mostra as marcas de bala no peito de Guevara em 10 de outubro de 1967. Ele foi executado dois dias antes de os bolivianos mostrarem seu corpo para um grupo de jornalistas como prova de que o famoso guerrilheiro estava morto.
             Guevara, porém, jamais chegou a usar do terror e, como fizera em Sierra Maestra, libertava os soldados capturados. Mas também violou algumas de suas próprias normas para a guerra de guerrilha. Seus homens estavam supercarregados, o que dificultava a movimentação na montanha. E, com sua mania de manter um diário e tirar fotografias, acabou revelando a identidade de muitos simpatizantes: quando os bolivianos pegaram essas fotos e documentos, prenderam e executaram dezenas de pessoas em todo o país.
                Outra razão para o fracasso foi que a ajuda dos partidos esquerdistas bolivianos jamais se materializou. O PC recusava qualquer cooperação, e os pequenos partidos de esquerda bem pouco tinham a oferecer. Em determinado momento, uma violenta disputa trabalhista nas minas de estanho obrigou a transferência de tropas da região onde estava Guevara e ameaçou a própria existência do governo Barrientos. Mas, sem apoio dentro do país, Che não foi capaz de aproveitar a situação. Os mineiros foram abruptamente reprimidos, o governo superou a crise política, e as tropas retornaram para caçar Guevara.
                Ainda que a guerrilha jamais tenha somado mais de 47 homens, venceu uma série de escaramuças com as tropas bolivianas, o que levou o governo de La Paz a superestimar o tamanho do exército de Guevara. Em abril, a tropa do guerrilheiro foi acidentalmente cortada em dois, e o exército interpretou isso como a existência de duas frentes de guerra. Em maio, 16 assessores militares norte-americanos chegaram para treinar o exército boliviano em táticas antiguerrilheiras.
O jornalista francês Régis Debray (à esquerda) e o socialista argentino Ciro Bustos esperam o veredicto de um tribunal militar boliviano, em novembro de 1967. Acusados de cooperarem com a guerrilha de Guevara, foram sentenciados a trinta anos de prisão.
            Guevara jamais foi capaz de reunir novamente as duas partes de seu pequeno exército. No dia 31 de agosto, os bolivianos encontraram e aniquilaram o outro grupo guerrilheiro. Guevara estava, agora, completamente isolado. Tinha apenas 17 guerrilheiros, seu equipamento de comunicação não funcionava, impedindo contatos com o mundo fora das montanhas bolivianas. Os camponeses estavam contra ele, os militares bolivianos tinham encontrado sua pista e o encurralado em um lugar inóspito e pouco familiar. Tinham até capturado os suprimentos da guerrilha, incluindo os remédios contra a asma de Guevara. O fim estava próximo.
              As forças de Guevara ainda travaram algumas escaramuças com as tropas bolivianas, entre setembro e outubro. Na batalha final, no dia 8 de outubro, os guerrilheiros foram encurralados em um despenhadeiro, e poucos escaparam. O próprio Guevara foi ferido na perna. Um soldado chegou a apontar uma arma para mata-lo, mas ele avisou: Não faça isso. Eu sou Che Guevara. Tenho mais valor para você vivo do que morto”. Feito prisioneiro, caminhou três quilômetros até a aldeia de La Higuera.
                O governo boliviano estava diante de um dilema: podiam executar Guevara ou leva-lo a julgamento. Colocá-lo no banco dos réus iria, certamente, expor La Paz a uma campanha internacional por sua libertação. Isso resolveu o assunto. Na manhã seguinte, o presidente Barrientos enviou uma mensagem para La Higuera: matem Guevara.
                Em 9 de outubro, Guevara foi interrogado por agentes da CIA e da inteligência boliviana. Então, segundo relato do jornalista José Alcazar, quando o oficial boliviano destacado para a execução hesitava em puxar o gatilho, Guevara olhou para ele e disse: “Bem, vai em frente, seu filho da puta, me mata!”. O soldado disparou diversas vezes. Che Guevara estava morto.
                Segundo Rojas, que esteve na Bolívia logo depois para defender um esquerdista que colaborou com Che, Ciro Busto, em seu julgamento, tal bravata jamais ocorreu. Ele conta em “Meu Amigo Che”, que Guevara recebera vários tiros antes da captura. Estava sentado no chão com as costas apoiadas na parede, respirando debilmente quando o capitão Gary Prado, chefe da companhia de Rangers que o capturou, disparou uma rajada de metralhadora, de cima para baixo. O tiro de misericórdia foi dado pelo coronel Andrés Selnich, superior hierárquico de Prado, com uma pistola de 9 milímetros. A bala atravessou-lhe o coração e o pulmão.
                Poucas horas mais tarde, uma dúzia de repórteres e um fotógrafo chegaram a La Higuera e foram levados até uma pequena lavandeira onde o corpo de Guevara fora colocado em exibição. Depois de constatarem que o lendário comandante guerrilheiro estava realmente morto, voltaram correndo para La Paz com a notícia.
O general René Barrientos liderou o golpe militar em 1964 e governou a Bolívia durante cinco anos. Foi dele a ordem de executar Che Guevara, em 1967.
            O corpo de Guevara foi enterrado em local não revelado, e suas mãos, separadas do corpo, embaladas em formol e enviadas a especialistas em impressões digitais na Argentina, para não haver dúvidas de que o morto era realmente Che. Durante dias, houve um debate internacional sobre a veracidade da morte do guerrilheiro. Todas as especulações terminaram no dia 15, quando Fidel Castro anunciou que realmente Guevara tinha sido capturado e executado na Bolívia.
                “Raramente alguém pode dizer de um homem com maior justiça, com maior acuidade, o que eu digo de Che: aquele homem de extraordinária virtude revolucionária... ele foi um extraordinário ser humano, um homem de extraordinária sensibilidade” pranteou Fidel.
 
Um imenso retrato de Guevara domina a parada militar em comemoração do 20º aniversário da revolução, em Havana. Depois de sua morte, Guevara foi absolvido de seus fracassos como administrado proclamado herói nacional. 

Capítulo 8: O legado de Che
                Depois de sua morte, Che Guevara foi instantaneamente transformado em um símbolo do compromisso e do heroísmo revolucionários. Inscrições de “Che vive” apareceram em muros e camisetas em todo o mundo. Posters e retratos eram exibidos em todos os continentes. Mesmo os Estados Unidos, cujo governo Guevara vigorosamente denunciara, estudantes começaram a imitar seu estilo de vestir, deixando crescer o cabelo e a barba para mostrar que não concordavam com a política externa da Casa Branca. Poucos líderes políticos da história tiveram sua imagem tão cultuada e difundida em partes tão diferentes do mundo.
                A oposição de Guevara ao comunismo ortodoxo e sua genuína preocupação com a pobreza do Terceiro Mundo fizeram dele uma figura ímpar no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70, não apenas em política, mas também em filosofia. Foi a época da ascensão da Nova Esquerda nos Estados Unidos, um grupo político e filosófico de marxistas, socialistas e liberais que compartilhavam muitas das crenças de Guevara. No Terceiro Mundo, muita gente que via com desconfiança os comunistas chineses e soviéticos encontrou uma resposta política em Che Guevara.
                Com Guevara como inspiração, esquerdistas e estudantes organizaram greves e manifestações por todos o Ocidente. Na França, colocaram contra a parede o governo conservador de Charles De Gaulle. Nos Estados Unidos, trouxeram para as ruas a insatisfação da população com a guerra do Vietnam e sepultaram as aspirações de reeleição do presidente Lyndon Johnson. No México, fizeram as primeiras grandes manifestações em décadas contra o Partido Institucional Revolucionário, que governa o país há cinquenta anos. E, quando a União Soviética invadiu a Tchecoslováquia para esmagar uma tentativa de reformas liberalizantes – uma invasão que Fidel aplaudiu -, retratos de Che apareceram nas ruas de Praga, e comunistas de toda a Europa Ocidental deixaram os PCs e formaram agremiações independentes de Moscou. Todos esses eventos aconteceram em 1968, enquanto a morte de Che ainda estava fresca na memória.
                Talvez a mais importante lembrança de Guevara esteja na consciência do Terceiro Mundo. Nos anos 70, o Movimento dos Não-alinhados se tornou uma das mais influentes organizações mundiais: pela primeira vez os países pobres tinham voz ativa e a oportunidade de desempenhar um papel decisivo em seus próprios desenvolvimentos. Na África, a guerra de guerrilha eclodiu em quase todos os países nos vinte anos seguintes à morte de Guevara, algumas vezes entre governos socialistas e revolucionários de direita e revolucionários de esquerda – mas, no Zaire, o coronel Mobutu ainda mantinha seu poder em 1988, duas décadas depois de Guevara ter lutado contra ele.
                Cuba também continua a sentir o legado de Guevara. Nos anos 70 e 80, Fidel enviou armas e soldados para apoiar os governos socialistas de Angola, Etiópia e Iêmen, com maior sucesso do que tivera na Venezuela, Congo e Bolívia. Por outro lado, Havana normalizou suas relações com a maioria dos países, exceto os Estados Unidos.
Cubanos festejam o 15º aniversário do ataque ao Moncada, em 1953. Fidel dedicou a celebração à memória de Guevara, "um homem de extraordinária virtude revolucionária".
            Na América Central, a Frente Sandinista de Libertação Nacional – uma coligação revolucionária reunindo variadas tonalidades de socialistas e liberais bastante parecida com o Movimento 26 de julho original – travou uma guerra de guerrilha e derrotou uma veterana ditadura apoiada pelos Estados Unidos. Em represália, a CIA armou um exercício contrarrevolucionário para repetir uma operação que fracassou na baía dos Porcos, há quase três décadas.
Manifestação estudantil na Cidade do México, em 1968. Guevara era visto como um herói e um exemplo por milhares de jovens latino-americanos na década seguinte a sua morte.
        O mundo continua a ser movimentado pelas mesmas forças que Guevara apoiou ou combateu e, frequentemente, as batalhas são travadas em seu nome. Tão forte são as paixões provocadas por sua memória, que ainda hoje a maioria do que é escrito a seu respeito trata-o como um monstro ou um santo. “Um fanático tão resoluto como Guevara pode ser contagioso, mas apenas para outros fanáticos”, opina seu biógrafo francês Léo Sauvage. Para outro francês, Régis Debray, um jornalista que lutou com Guevara na Bolívia, “a aventura de Che foi um foi uma aventura mística, e seu último mês de vida a Paixão. Ele traz à mente a imagem de Cristo”. O filósofo Jean-Paul Sartre dizia que Guevara fora simplesmente “o mais completo homem de nosso tempo”.
Um monumento a Guevara erguido por chilenos em 1968. Em 1970, os chilenos elegeram um presidente socialista, Salvador Allende, que três anos depois foi derrubado e morto em sangrento golpe de Estado.
            Para Fidel Castro, que se tornou amigo de Guevara certa noite na Cidade do México, ele era “um homem de total integridade, um homem de supremo senso de honra, de absoluta sinceridade – um homem de hábitos estóicos e espartanos, um homem em cuja conduta nenhuma mácula pode ser encontrada. Ele constituía, por suas virtudes, o que pode ser chamado de o verdadeiro modelo revolucionário”.
"Viva a Revolução" é a manchete do Granma, o jornal do Partido Comunista Cubano, no 25º aniversário da tomada do poder por Fidel Castro. O papel  de Guevara na guerra revolucionária já se tornara lenda, e seu nome um símbolo para os movimentos esquerdistas em todo o mundo.

Cronologia
1928 – 14 DE JULHO: Nasce Ernesto Guevara de La Serna, em Rosário, Argentina.
1951/52 – Viaja de motocicleta pela América Latina; visita os Estado Unidos.
1953 – Forma-se médico pela Universidade de Buenos Aires.
1954 – Viaja à Bolívia e à Guatemala.
1955 – Conhece Fidel Castro no México.
1956 – Participa da expedição do Granma.
1956/58 – Luta na guerra revolucionária cubana.
1959 – Janeiro: entra triunfante em Havana
             Junho/setembro: Viaja pela Europa, Ásia e África como embaixador da revolução cubana.
             Outubro: Nomeado diretor das Indústrias do Instituto Nacional de Reforma Agrária.
1960: Outubro/Dezembro: Visita a Tchecoslováquia, a União Soviética, a China e a Coreia do Norte.
1961 – Nomeado ministro das Indústrias.
            Agosto: Participa da cúpula econômica de Punta del Este.
1962/63 – Viaja à União Soviética, à China e à África.
1965 – Visita a África.
             Julho: Participa da guerra civil no Congo
1966 – Março: Retorna do Congo para Havana.
             Novembro: Desembarca na Bolívia para iniciar luta de guerrilhas.
1967 – 9 de outubro: Executado na Bolívia.  
                 

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