quarta-feira, 2 de março de 2016

 A cultura surda
Este trabalho tem como objetivo apresentar o resultado de uma meticulosa pesquisa concernente às especificidades dos deficientes auditivos. Abordaremos os problemas que impossibilitam a inserção do surdo na sociedade.
O mecanismo suplementar que empregaremos em nossa discussão diz respeito à existência ou não de uma cultura peculiar dos surdos. Em outras palavras, discorreremos acerca dos empecilhos de se empregar o termo “cultura surda” com a finalidade de determinar a comunidade representada pelos deficientes auditivos. Não estaremos defendendo pontos de vistas sobre o tema no decorrer das análises propostas, mas tão-somente avaliando as implicações intrínsecas ao emprego de tal termo.                                                      
       Partindo-se de pressupostos conceituais arraigados na sociedade atual, utilizaremos proposições teóricas e pragmáticas no sentido de se entender a forma pela qual o surdo é tratado na comunidade. Avaliaremos também os elementos adotados por eles para adaptar-se na sociedade a qual pertence. Isto é, o estabelecimento de parâmetros constitutivos que viabilizarão melhores condições para se integrar no seu ambiente.                                               . 
Dentro da lógica de relações de poder, embasados por princípios marxistas, debateremos o quanto é complexo o convívio de duas especificidades de valores e costumes completamente distintos. Ou seja, o quanto é complicado para os surdos, que possuem tradições culturais peculiares, se inserirem na sociedade que, na sua essência, já estabeleceu previamente um conjunto de normas que devem ser seguidas. Estruturalmente dizendo, inexiste uma relação de cumplicidade no interior da coletividade, isto é, a “cultura dominante” não concede espaço para que outras formas de representações se consolidem.                                                                              
Analisaremos sucintamente os elementos importantes para se determinar a existência de uma cultura na sociedade, definiremos quais são os fundamentos básicos para se explicar as tradições de uma comunidade. Partindo-se de proposições pragmáticas, onde algumas questões como religião; nacionalidade; formas de comunicação; etnia; costumes; história; dentre outras, são indispensáveis para se determinar a existência ou não de uma cultura, debateremos, sobremaneira, o papel exercido pelo surdo na sociedade que impôs um amálgama de traços culturais específicos.
Enfim, propomos avaliar e destacar as implicações inerentes à utilização do termo “cultura surda”. Partindo-se de uma visão organicista, discorreremos acerca dos fatores determinantes para se entender as especificidades das comunidades surdas e os mecanismos empregados na relação com a chamada “cultura dominante”.
            Historicamente os surdos sempre foram estigmatizados, pois faltavam-lhe o essencial para enquadrá-los como seres humanos: a linguagem (oral e bem delimitada). Sem contar que existia a crença de que eles não possuíam um potencial cognitivo adequado para cumprir uma função preponderante na sociedade. Eles não conseguiam, em decorrência do preconceito prevalecente na comunidade, serem aceitos plenamente, pois a inexistência da linguagem oral atribuía-lhe uma condição de inferioridade.
            Todo esse estigma culminou num perceptível afastamento do surdo no tocante à estrutura cultural dominante. Isto é, os surdos passaram a se isolar diante do conjunto de regras e normas prévias legitimadas pela sociedade. Criou-se com isso, a crença de que existe uma cultura surda no interior da coletividade, que poderia ser chamada de sub-cultura. Teria como objetivos primordiais viabilizar uma proteção perante o preconceito da chamada “cultura dominante”, e estabelecer uma identidade peculiar à comunidade surda.
            Porém, a problemática levantada pelos estudiosos do tema diz respeito à real existência de uma “cultura surda” no interior da sociedade, isto é, os elementos condicionantes para se afirmar a existência de traços culturais de uma grupo minoritário, dentro de uma cultura sobrepujante.
            Um dos elementos de substancial importância para se definir a “cultura surda” diz respeito à sua forma de comunicação. O estabelecimento de sua identidade está condicionado à forma pela qual se interage na sociedade, mais precisamente, a sua linguagem. Seria o elemento diferenciador no que concerne à especificidade do seu contato com a cultura majoritária através da comunicação.  
Uma pessoa surda é aquela que, por ter um déficit de audição, apresenta uma diferença com respeito ao padrão esperado e, portanto, deve construir uma identidade em termos dessa diferença para integrar-se na sociedade e na cultura em que nasceu.[1]
            Sem negar a existência da “cultura surda”, Behares argumenta que os surdos procuram encontrar mecanismos no sentido melhor interagir com a cultura dominante. Em outras palavras, o deficiente auditivo necessita encontrar elementos para se estabelecer na sociedade, cujas formulações conceituais e tradicionais já estão previamente arraigadas.
            A sociedade de um modo geral consolida um padrão cultural e modalidades de vivência que acha mais conveniente. Quem não se enquadra nesse padrão é classificado como anormal. Inexiste uma política de inserção do surdo ou outras comunidades minoritárias no padrão materializado pela cultura dominante. Com isso, o surdo precisa redefinir traços e conceituações teóricas e práticas com a finalidade de se fazer presente na comunidade que o cerca.
            Toda discriminação e preconceito estão relacionados à estruturação de significações culturais inerentes à cultura sobrepujante. Vale ressaltar que o surdo é classificado, de uma maneira subjetiva, como um estrangeiro em seu próprio país. As normas sociais acabam colocando-o à margem da sociedade por causa de sua forma de comunicação, seu comportamento, seu modo de agir sobre o mundo e a sua maneira de pensar. Com isso, tudo que foge das normas pré-estabelecidas é considerada destituída de racionalidade.  
            Partindo-se do princípio de que estamos inseridos numa relação de poder, que uma reclassificação de preceitos e valores, existe uma força veemente exercida pela “cultura dominante” sobre outras formas de manifestação cultural, consideradas minoritárias. Torna-se prontamente perceptível que há uma imposição da cultura tida como mais solidificada sobre as demais, consideradas inferiores (como a “cultura surda”). O objetivo dessa imposição é fazer com que os surdos percam sua identidade, e que sua diferença seja assimilada ou disfarçada.
Existem duas correntes de pensamento completamente distintas no que concerne à questão da cultura surda. Uma favorável e outra totalmente contrária à sua existência.  Para os defensores dessa representação cultural, distinta da cultura majoritária, o argumento consiste em sua especificidade lingüística e seus valores peculiares, onde o surdo estaria visivelmente destacado e imune mediante os costumes e tradições vigentes.  Vale enfatizar que o argumento dessa tese gira em torno da questão da linguagem, da forma do surdo se comunicar na comunidade. Sem contar que alguns deficientes auditivos são contrários à interação com os ouvintes, justamente em decorrência do medo de sofrer preconceito e discriminação. Esses elementos seriam a prova cabal da existência de uma cultura redefinindo mecanismos particulares no sentido de se enquadrar na estrutura social pré-concebida.
Há uma grande porcentagem de casamentos endógamos. Os membros da comunidade crêem, tal como os de outras minorias culturais, que se deve casar também com membro pertencente à minoria: o casamento com uma pessoa ouvinte é totalmente desaprovado. Ou seja, ainda permanece, implicitamente, o medo do preconceito.[2]

            Por outro lado, alguns pesquisadores argumentam que inexiste uma cultura fundamentada pela comunidade surda. Os argumentos consistem na inviabilidade de se apontar a linguagem como o fator determinante para a construção de uma identidade cultural, e a questão inerente a valores recebidos subjetivamente da chamada “cultura dominante”. Em outras palavras, o surdo se desenvolve inserido na sociedade que possui representações sócio-culturais determinadas, o que o impediria de construir uma cultura particular. O surdo tão-somente buscaria mecanismos visando adequar-se na sociedade que o rejeita por causa de sua deficiência, mas não recria valores e costumes tradicionais no sentido de estabelecer uma cultura separada da imposta pela comunidade. 
            Vale frisar que a separação entre ouvintes e não-ouvintes é resultado das relações humanas, que estabelece normas e condutas padronizadas que devem ser seguidas rigidamente. Nesse sentido, as insígnias de “cultura surda”, “comunidade surda”, “identidade surda”, servem para delimitar os espaços ocupados pelos deficientes auditivos nas sociedades as quais pertencem. Isto é, o surdo teria com isso o seu lugar devidamente marcado no conjunto das relações sociais. Portanto, mais uma forma de preconceito contra os surdos.
            Um dos critérios empregados para se justificar a suposta hegemonia da cultura dos ouvintes diz respeito ao aspecto quantitativo. Isto é, a população ouvinte é muito superior à comunidade de surdos. Esse argumento é nitidamente preconceituoso e desprovido de qualquer princípio humanista. Esse elemento não seria suficiente para explicar e consolidar a preponderância de determinados grupos sociais sobre outros.
            Inegavelmente os surdos possuem alguns traços culturais específicos, que os distinguem do conjunto de costumes e regras pré-estabelecidas pela cultura chamada “dominante”. O exemplo claro disso é a sua forma de comunicação. O problema está em classificar os surdos como idênticos, pois isso invariavelmente culminaria na perda de sua especificidade. Essa especificidade está relacionada à religião, nacionalidade, etnia, costumes, que os surdos trazem intrínsecos em sua personalidade, mas que são desconsiderados em virtude de sua surdez. Em outras palavras, o surdo não é visto em sua totalidade, ou seja, em sua essência e constituição social e formação ideológica e política, mas tão-somente no que concerne à sua condição de deficiente auditivo.
Não existe uma identidade exclusiva e única como a surda. Ela é construída por papéis sociais diferentes (pode-se ser surdo, rico, heterossexual, branco, professor, pai) e também pela língua que constrói nossa subjetividade. A pessoa é um mosaico intrincado de diferentes potenciais de poder em relações sociais diferentes. Nesse caso, não há escolhas “livres” nas nossas identidades; isso depende da nossa vontade. Elas são determinadas pelas práticas discursivas, impregnadas por relações simbólicas de poder.[3]                
            Portanto, é demasiadamente complexo afirmar a existência de uma “cultura surda” no âmago da sociedade. O surdo possui uma rede de conceitos e valores que lhe foram passadas pela cultura dita “sobrepujante”, mesmo que ele esteja isolado do convívio social e procurado manter-se imune perante o que lhe fora outorgado. O homem, independente de sua condição física, é o reflexo da sociedade a qual pertence. I
            O que a comunidade surda procura estabelecer são articulações no sentido de adaptar-se à realidade, ou seja, procura redefinir valores e conceitos com a finalidade de legitimar uma melhor convivência na sociedade.
Levando essas considerações para o campo da surdez, vemos que, longe de ser apenas um debate por direitos ou de tentar trazer melhorias para o surdo, a defesa da cultura surda atualiza os mecanismos de reprodução da própria desigualdade, e o termo “cultura” passa a ser um dos instrumentos de legitimação dessa desigualdade e da tentativa de preservar uma idéia de homogeneidade.[4]         
            Na sociedade atual, dominada pelas vertentes da política neoliberal, onde princípios humanitários são desvalorizados costumeiramente em nome de valores materiais, a utilização do termo “cultura surda” acaba ganhando conotações pejorativas e deturpações em sua funcionalidade. Torna-se com isso, mais um instrumento de segregação e consolidação da desigualdade no interior da sociedade, pois o espaço do surdo estaria bem delimitado e previamente definido.
            O que deve ser repensado no que concerne às relações sociais e o papel que o surdo exerce na sociedade, diz respeito à forma como enxergamos o outro. Isto é, os problemas inerentes à busca de aceitação com o que é diferente. Há uma redefinição estratégica de valores e princípios sócio-culturais de representações sobre o que lhes são estranhos. Há uma dificuldade muito grande em se entender as formulações estruturais da personalidade alheia.
            O que devemos enfatizar é que há uma infinidade de problemas em se analisar as relações sociais partindo-se da dicotomia entre os pressupostos conceituais entre os ouvintes e não-ouvintes. A arquitetura social não se reduz somente a isso evidentemente. A identidade seria construída de uma maneira extremamente negativa, pois delimitaria, sobremaneira, o campo de participação do surdo na sociedade. Seria outro mecanismo para se concretizar a segregação e a desigualdade na comunidade.
            Vale ressalvar que a linguagem não pode ser apontada como o único elemento para se determinar a fundamentação teórica e epistemológica da cultura. Outros requisitos são essenciais para determinar a identidade de uma determinada sociedade, como a etnia, a nacionalidade, a religião, concepções políticas e estéticos, dentre outras. Não é algo homogêneo, mas totalmente dinâmico e variado.
            Sem contar que em praticamente todas as relações sociais existe uma luta incessante não só pela concretização de poderes como também por saberes. E as comunidades consideradas “minoritárias” estão sempre colocadas à margem da sociedade, como se fossem incapazes de representar e modificar a estrutura organizacional da coletividade.
            É evidente que existem traços culturais específicos no âmago da comunidade surda, com uma identidade definida, consolidada através de sua forma de comunicação. Todavia, o que procuramos afirmar no decorrer de nossos estudos foi que a utilização do termo “cultura surda” serve como mecanismo para viabilizar a segregação social. Sem contar que existe uma infinidade de proposições relevantes que devem ser consideradas para se classificar a estruturação de uma cultura.
            Positivamente, a afirmação de uma identidade surda e de suas distinções no que diz respeito ao papel que o deficiente auditivo exerce na sociedade, traduz um desejo de garantir-lhes o acesso aos bens sociais enquanto direito, não enquanto concessão. Que o surdo deve ser respeitado como ser humano, portador das mesmas aptidões dos ouvintes e capaz de agir e transformar sua história.

Bibliografia
BEHARES, L. E. “Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos culturais”. In: cadernos de educação especial. Universidade Federal de Santa Catarina, V, n.4, 1994

LOPES, L. P. M. “Discursos de identidade em sala de aula de L1: a construção da diferença”. In: SIGNORINI, I (org.). Língua (gem) e identidade. Campinas: Mercado das Letras/Fapesp/ Faep, 2001

SANTANA, Ana Paula. “Surdez e linguagem”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2007

SANTANA, Ana Paula. BERGAMO, Alexandre. “Cultura e identidade surdas: encruzilhada de lutas sociais e teóricas”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2005

SÁ, Nídia Limeira de; “Cultura, poder e educação de surdos. 1° Ed. São Paulo: Paulinas 2006





  






[1] BEHARES, L. E. “Novas correntes na educação do surdo: dos enfoques clínicos aos culturais”. In: cadernos de educação especial. Universidade Federal de Santa Catarina, V, n.4, 1994, p.1
[2] SANTANA, Ana Paula. “Surdez e linguagem”. 2° Ed. São Paulo. Plexus, 2007, p. 48
[3] LOPES, L. P. M. “Discursos de identidade em sala de aula de L1: a construção da diferença”. In: SIGNORINI, I (org.). Língua (gem) e identidade. Campinas: Mercado das Letras/Fapesp/ Faep, 2001, PP. 303-330.
[4] SÁ, Nídia Limeira de; “Cultura, poder e educação de surdos. 1° Ed. São Paulo: Paulinas 2006, p.36 

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